é outono já
encomendei lenha seca
afago de novo o fumo com gomos de
laranja
o gato crava-nos ainda os olhos como um filho
enterra as unhas na carne da mãe
regresso à cidade
(ao grande Largo que aos domingos é
o centro do mundo)
à mulher e aos filhos
à sogra vigilante das orações a Santo Expedito
aos pais penitentes à espera da
morte
oh pai!
perdoa a ausência da mãe como ela perdoou também as tuas outras
ausências:
"este senhor eu não sei quem é está sempre comigo é muito meu amigo e eu sou
muito amiga dele"
pois eu sou teu filho minha mãe não
te lembras!?
(chorei compulsivamente nesse dia).
é tão frio tão negro tão profundo
o poço
da morte!
venho do Inferno
das tumbas abertas
do sexto círculo de Dante Alighieri
regresso à cidade à família
ao berço de todos os outros deuses:
o cego Borges servo na Babilónia e invisível na Lua,
a Mallarmé e Baudelaire
(para estar no mundo, para estar
no mundo
é preciso que te embriagues sem trégua) e o temerário Célan em Sete Rosas Imortais
é preciso dançar para estar no mundo
Zaratustra eu só
acredito num Deus que saiba dançar
a
Sabine Weiss e à maravilhosa fotografia daquela criança agarrada a uma
árvore
ao homem que diz,
como e.e. cummings:
"obrigado Meu Deus por mais este espantoso dia, pelos saltitantes e virentes
espíritos das árvores"
a Roger Michell em Venus, a felicidade devia ser exterminada?
volto a pintar as paredes da casa
carrego elefantes transformo pássaros em fogo,
sou outra vez o motor da alegria, de novo
selvagem e embriagadamente rico, de novo
orgulhosamente suspenso pelo
escalpe
— improcriável e impróprio para procriar.
afinal... regresso inteiro e mínimo ao eunuco,
o cérbero grego primitivo: "Deus fez de mim um homem diferente penteou-me cortou-me a barba comprou-me um par de sapatos novos fez-me decorar ladainhas inteiras preparou-me para entrar no Inferno."
regresso à infância, este milagre irreprimível de saber envelhecer.
afinal...
Agostinho da Silva: "a vida para a arte [a vida para o amor]
é sempre breve.