Portugal — luxúria e genética
[ há pátrias assim... ]
Guerra Junqueiro, 'Pátria' (trecho em XXIII cenas, ed. 1925: p. 13)
«Noite de tormenta. Céu caliginoso, mar em fúria, ventanias
trágicas, relâmpagos distantes. O castelo do rei à beira-mar. Sala
de armas... Nos muros, entre panóplias, os retratos em pé da
dinastia de Bragança. Agachados no lume, os três cães familiares de
el-rei — Iago, Judas, Veneno. Entram Opiparus, Magnus e Ciganus.
Sentam-se, afagando os cães. Magnus pousa na mesa um pergaminho com
o selo real. É o tratado com a Inglaterra.
CIGANUS, apontando o pergaminho e rindo:
— Necrológio a assinar pelo defunto!
MAGNUS, com gravidade:
— É urgente; salvamo-nos...
OPIPARUS, acendendo um charuto:
— Inda bem! Inda bem! Vai-se a área das Quinas...»
Entre o «falta cumprir-se Portugal» («cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez»,
Pessoa, 1934) e o acordo de ontem sobre o Orçamento de 2011 (um
antigo ministro das Finanças diz que é o facto mais importante da
sua carreira política — enfim, inchaços de pele, porque já não há
ali osso algum e muito menos carne) vai provavelmente muito mais do
que um século de patriótica mediocridade.

Guerra Junqueiro
(1850-1923) e rosto de «Pátria» (edição especial da Livraria Chardron,
Lelo & Irmão, 1925).
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional – reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (…)
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida
íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga
e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo,
donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença
geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no
Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este, criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela
um saca-rolhas...
Dois partidos (…) sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (…), vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão
(...) de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»
GUERRA JUNQUEIRO, 'Pátria' (1896).
«Todos os grandes filhos da puta são reproduções em ponto grande do pequeno filho da puta.»
ALBERTO
PIMENTA, 1977.
O grande filho-da-puta diz:
— Faça-se este país!
E, porque quem manda é esse grande filho-da-puta,
os pequenos filhos-da-putazinhos todos
unem-se
para fazer o país.
Depois, o grande filho-da-puta
mija sobre o país (quase) feito e diz:
— Beba-se do mijo de quem manda no país.
E, porque quem manda é esse
grande filho-da-puta,
vergam-se
todos os
pequenos filhos-da-putazinhos
para beberem do mijo
do grande filho-da-puta…
Assim, o mal deste país
é
genético:
só há grandes filhos-da-puta
e pequenos filhos-da-puta (os filhos-da-putazinhos).
Ou quase.
Antero de Alda
O País dos Filhos-da-Puta
Outubro de 2010
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Ainda Guerra Junqueiro e ainda 'Pátria' (texto de um discurso de
1897 publicado na edição de 1925, p. 163: «...Pois a Pátria
que levantou a Batalha, ergueu os Jerónimos e escreveu os Lusíadas;
a Pátria que foi um instante mensageira do Eterno, portadora do
Verbo, veículo de Deus, há-de morrer num cano de esgoto, de morte
moral, que é a única morte definitiva? (...) Não. A Pátria
Portuguesa não morreu ainda... Um crente é inexpugnável!»
Mais de Guerra Junqueiro: «Cospe o estrangeiro afrontas assassinas/ Sobre o rosto da Pátria a agonizar.../»
(Finis Patriae, 1890).
Foi um feroz republicano, dizem. Arrependeu-se depois de 1910:
«Todos se anicham nos melhores lugares, eles e as famílias. Fora
o Almeida [António José de Almeida] e mais dois ou três, o
resto devora.» (Segundo Raul Brandão, Memórias, volume II, 1925).
Tudo a propósito do dia de ontem, 29 de Outubro de 2010, 23h19: os dois
representantes do Bloco Central assinam o Orçamento. Portugal
salvou-se do FMI? Da porca faminta da União Europeia? Dos fantasmas da
Inglaterra?

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