o azul de Beirute
ou...
Uma mulher desnecessária
[ Rabih Alameddine ]
«A cura para a solidão é o isolamento.»
MARIANNE
MOORE
Os homens escrevem só para as mulheres sensíveis, porque a insensibilidade mata-lhes o cérebro.

Imagem: NAXOS AudioBooks Anna
Kareninna read by Laura Paton.
Aaliya Saleh vive sozinha no seu apartamento em Beirute, rodeada de pilhas de livros. Aos 72 anos, sem pai nem mãe, sem filhos e sem marido ou amante, enfim, agnóstica (agnóstica no sentido em que já só acredita nas personagens ou em alguns autores dos livros que lê), dedica-se exclusivamente a traduzir para árabe escritores como
Hannah Arendt, Pessoa, Kafka, Proust e Walter Benjamin, Faulkner, Hemingway, Dostoiévski,
Calvino, Jorge Luis Borges, Nabokov, Saramago... Tolstói — Anna Karenina!
Começou aos 15 anos, mas desde os 22 que, praticamente todos os anos, exactamente a 1 de Janeiro, inicia uma nova tradução.
Nunca publica, quer-se dizer: nunca ninguém irá ler o que traduz... Como que seguindo um ritual absurdo, as suas traduções ficam esquecidas em pequenas caixas fechadas com fita adesiva, no quarto da antiga empregada e ultimamente na casa de banho porque o quarto já está cheio.
Aaliya Saleh, ela mesma, que aos dezasseis anos foi prometida a um marido odioso (um marido odioso quer dizer: um homem sem fé no amor ou um marido inútil), calcula que nestes últimos 50 anos já traduziu cerca de quarenta livros,
«trinta e sete, se não estou em erro.»
Um dia, farta de ouvir as vizinhas —
«três
bruxas!» — criticarem-lhe a extrema brancura do seu cabelo, decidiu pintá-lo de... azul!
O resto, como acontece com a maioria dos romances, não vale muito a pena ler. Afinal,
«o livro está pronto [ está feito o amor ], a maravilha dissolve-se...»
____
"O resto, (...) não vale a pena ler."
Talvez só lembrar que há crianças (meninas) que nascem e morrem todos os dias na China, mulheres que chegam à Europa para que certos homens se possam servir delas e devolvê-las ao lixo após utilização execrável,
e até raparigas (nossas vizinhas) que ainda hoje são votadas ao desprezo perante a vaidade dos irmãos e a indiferença das
próprias mães, estas sim verdadeiras mulheres desnecessárias,
ou mães inúteis.
Relacionados [
as mães do Alcorão
] [
pedras assassinas
]

anterior
|
início
| seguinte
|