cem anos de
solidão...
Ainda a propósito do 8 de Maio e da malograda
tentativa dos comunistas radicais gregos para contrariarem os
capitalistas da União Europeia...

Power house mechanic working on steam pump.
Nova Iorque, 1920.
foto
LEWIS HINE
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.
O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções. Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados,
que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas
da Macedónia.
Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda a gente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam dos seus lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurava e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades.
«As coisas têm vida própria», apregoava o cigano com um sotaque
áspero, «é tudo uma questão de lhes acordar a alma.» José Arcadio Buendía, cuja imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da
Natureza e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra...
Gabriel García Márquez
"Cem Anos de Solidão"
Poderemos estar no início de mais cem
anos de solidão,
divididos entre (para uns) «as coisas
[que] têm vida própria» e (para outros) a desesperada
necessidade de
«desentranhar o ouro da terra.»
Divididos e com a pesada tarefa de nos
conciliarmos...
_______
"acordar a alma..."
Cem anos de solidão ou cem anos de cegueira ou cem anos de ilusões (José Arcadio Buendía trocou a sua mula e algumas cabras pelos dois lingotes
magnetizados porque acreditava que depressa lhe sobraria ouro com que
empedrar a casa, enquanto a mulher Úrsula chorava de consternação...)
poderão muito bem ser também cem anos de atraso. Na verdade, sinto-me
a viver assim, num mundo com cem anos de atraso: não tanto
na solidão de quem enlouquece com os excessos, mas muito mais na
solidão de quem está a morrer aos poucos com as carências mais
simples. Porém, como sugere o próprio Gabriel García Márquez,
acredito que, mais do que pelo amor e pelo ódio,
todos estamos terrivelmente ligados por essa outra feérica solidão de «uma dor comum de
consciência.» Afinal, é tudo uma questão de «acordar a alma...»

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