silêncio(s) sempre...
[ António José
Forte ]
A
frágil história dos homens escrevem-na os poetas com
caligrafia de aves sobre os precipícios, para engolir todo o pranto da terra, até explodir
nos lábios.


foto: CARLOS GARCIA RAWLINS/Reuters
Jovem recupera de um ataque com gás lacrimogéneo em
Caracas
Venezuela, 17 de Fevereiro de 2014
É o dia a dia amante do poeta
um rosto contra todas as pátrias
num arco de versos no
deserto do século
uma cratera aberta no silêncio
para engolir todo o pranto da terra
até o homem ficar nu
ouro sobre azul sobre a morte
definitivamente
É o dia a dia amante do poeta
as letras do seu nome
pronunciadas no abismo
enquanto um povo inteiro desaparecido
em beleza
sob a asa do mistério
canta na sua boca
e um oceano e outro oceano
amanhece contra o coração
toda a saliva do amor
como uma serpente
sorrindo num vendaval de estandartes
brancos
desfraldados a teus pés
caligrafia de aves sobre o precipício
antes do relâmpago
na neve devagar
até explodir nos lábios
É o dia a dia amante do poeta
solitário
na clareira violenta onde uma criança
em fúria
escreve a sua história
e um relógio de fogo
queima as horas imundas
onde uma estátua de ossos
se inclina chorando
contra o peito da noite
e um automóvel e outro
automóvel que passa
desaparece num vómito
É o dia a dia amante do poeta
no livro dos mortos que voa
está escrito o nome dele
ao lado da sua máquina de guerra
ANTÓNIO
JOSÉ
FORTE
Corpo de Ninguém
Hiena Editora, 1989
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Ucrânia, Venezuela, Brasil, Síria, Líbia, Cuba,
Congo, Angola, China, Portugal...
Vacilamos todos entre comunismo ou capitalismo, como se não houvesse outra forma de morrer.

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