o alegre
desespero
[
António Gedeão ]
«O problema não é o Excel, é a persistência do
erro na vida real», diz Sandro Mendonça, hoje, 21 de Abril, no Diário de
Notícias.

foto VIRXILIO VIEITEZ
Galicia, 1965.
Afinal, a III Grande Guerra pode ter começado num
erro do Excel. Provavelmente, foi também um erro de raiz quadrada que
criou a bomba de hidrogénio, provocou a ira de Hitler, a Guerra dos
Cem Anos, as ilusões da Armada Invencível e da Campanha de Napoleão
na Rússia, as demências de Calígula e Nero e o grande incêndio de
Roma, as deformidades de Cerberus... Decerto Bin Laden foi também uma criação do Office da
Microsoft e nos próximos dias haverá uma corrida aos tribunais para
sacar mais dinheiro a Bill Gates...
Há um bom par de semanas atrás, Merkel (Merkel
is a bitch!) disse nas nossas televisões qualquer coisa como
isto: «Os portugueses têm que trabalhar mais para poderem ganhar
dinheiro para comprarem os produtos da Alemanha para os alemães
poderem ir passar férias a Portugal.» São estes os dados da
maldita folha de Excel.
A Europa é um cárcere!
Se a culpa é da Matemática, o nosso desespero deve
ter alguma compensação. Krugman está certo: as
dívidas não têm que ser pagas, temos que sair rapidamente do Euro, desfazer a
UE, enfim, abandonar esta guerra e deixar os nossos carrascos
definhar na sua solidão.
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de
um certo Fernão Barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com
flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que
houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o
Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado
e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes, e o Xenofonte,
e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do
Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram
senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o
Epiro,
e conquistavam o
Epiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam
tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as Campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
ANTÓNIO GEDEÃO
Poema do Alegre Desespero
Poesias Completas, Sá da Costa
Editora, 1987.

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