[ Doron Blake e o 'sintoma'
familiar de Lacan ]
os filhos do superesperma
Sarai, mulher de Abraão, não lhe tinha dado filhos;
mas, possuindo uma escrava egípcia, chamada Agar, disse a Abraão:
“Eis que o Senhor me fez estéril; rogo-te que tomes a minha escrava,
para ver se ao menos por ela eu posso ter filhos”.
Abraão aceitou a proposta de Sarai.
GÉNESIS, 16: 1-2.

Robert Graham em
pose no Repository for Germinal Choice e Doron Blake com a sua
mãe Afton, que recorreu ao banco de esperma do Dr. Graham em 1982.
fotos ERIC MYER
(s/d) e DAVE
LUCHANSKY/Life, Los Angeles (1999).
As mulheres nunca são perversas, porque são elas que têm os filhos
(LACAN).
Consta do anedotário da literatura universal que Bernard Shaw (Nobel em 1926) foi um dia
interpelado por Isadora Duncan, a vistosa bailarina americana, com a
hipótese de gerarem «um filho perfeito» juntando a
inteligência dele com a beleza dela. Não traindo a presumida
genialidade, o escritor ter-lhe-á respondido: mas, senhora,
infelizmente a criança poderá herdar a minha beleza e a sua
inteligência...
O apelo da
trans-humanidade
As preocupações com a eugenia são tão
antigas quanto a humanidade. Porém, só no último quarto do século XX
surgiu a fertilização in vitro, na Inglaterra, quando Patrick Steptoe e Robert Edwards apresentaram
a primeira
bebé-proveta, Louise Joy Brown, nascida em Oldham a 25 de Julho de
1978.
Esta experiência provocou as maiores desconfianças entre cientistas e
teólogos, mesmo conhecendo-se a publicação, em 1971, do livro «Bioethics: bridge to the future»,
onde Van Rensselaer Potter definia bioética como «a ciência da sobrevivência»...
Steptoe e Edwards acabaram
por obter reconhecimento internacional após a segunda experiência
com sucesso: Alastair Montgomery nasceu em Glasgow,
na Escócia, a 14 de Janeiro de 1979. Bioética e biodireito receberam
então o benefício de médicos e geneticistas concentrados na
reposição da dignidade humana e no direito à vida.
Entretanto, o apelo da super ou trans-humanidade não é
tão recente. Já
em 1865 Francis Galton (primo de Darwin), através do livro «Hereditary Talent and Genius»,
propunha uma espécie de 'eugenia racial' para enfatizar o apogeu do
império Britânico. Em consequência, nasceu em Londres, em 1908, a Eugenics Society,
e a ideia proliferou por muitos outros países — EUA, França,
Suíça, Suécia, Argentina, Brasil, Austrália, Nova Zelândia... —,
alguns dos quais chegaram a implementar programas governamentais de esterilização,
até chegar à Alemanha nazi...
Robert Graham e 'os filhos do superesperma'
Quando o drama da pureza da raça parecia ter-se
fundido nos fornos dos campos de concentração com os milhões de vítimas do holocausto,
eis que em 1979, na Califórnia, o multimilionário Robert Clark Graham — até então conhecido por
inventar as lentes de plástico (inquebráveis) para óculos — criou
o Repository for Germinal Choice, um banco de esperma baseado
nas contribuições de dadores sobredotados com a finalidade de criar
seres humanos com um quociente de inteligência acima
da média. Graham pretendia angariar 'superesperma' de laureados com
o prémio Nobel, visando, segundo o que o próprio declarou aos
jornais,
«deter a descida dos
níveis de inteligência».
Um dos dadores foi William Bradford Shockley,
Nobel da Física em 1956, que mais tarde viria a desenvolver estudos
genéticos baseados em testes de QI. Shockley tornou-se tristemente
célebre ao defender que os afro-americanos são hereditariamente menos inteligentes do que os caucasianos,
e chegou mesmo a sugerir que todas as pessoas com um QI inferior a 100
deveriam aderir a um plano de esterilização voluntária.
O caso Doron Blake
e a noção de 'sintoma' familiar de Lacan
Robert C. Graham faleceu com 90 anos,
em 1997. Dois anos depois foram destruídas todas as provas do seu
banco de esperma e hoje são raras as informações sobre as suas
actividades e as pessoas que com ele trabalharam. Não obstante,
sabe-se que mais de duzentas crianças nasceram do seu laboratório,
fruto do interesse de outras tantas mulheres solteiras ou casadas
com maridos estéreis. Afton Blake, uma psicóloga hippie que
tem agora 67 anos e vive em Los Angeles, foi uma dessas mulheres que
escolheu do catálogo de esperma do Dr. Graham um dador excepcional.
O seu filho, Doron («dádiva», em grego) nasceu em Agosto de
1982 e depressa revelou qualidades surpreendentes: começou a andar aos 9
meses, aos 14 falava com fluência, aos 2 anos interessava-se por
computadores, no jardim-de-infância lia Shakespeare e aos seis
anos apresentava um QI de 180! Era brilhante a matemática.
Mas a senhora Blake depressa descobriu
que o seu filho poderia ser uma fonte suplementar de rendimento, e
quando este ainda não tinha atingido a maioridade já havia concedido
mais de uma centena de entrevistas a jornais e televisões de todo o
mundo, pelas quais recebia significativas quantias de dinheiro...
A educação de Doron Blake diz-nos que há muitas lições a tirar deste episódio bizarro de produção de crianças de marca, que envolve heterossexuais sem doenças hereditárias e com um índice de mais de 50% de espermatozóides com locomoção em linha recta —
os três critérios principais para estabelecer um dador.
Doron foi amamentado até aos 6 anos.
Criado sob o estigma do fantasma paterno, não chegou a ser — como
diria Lacan — o 'sintoma' familiar, ou o filho que tem a função de
selar o pacto entre homem e mulher na instituição do casamento.
Assim, na ausência de um pai verdadeiro, transformou-se — ainda
presumindo de Lacan — numa criança débil e, por
consequência,
num 'objecto' sujeito aos caprichos da progenitora. Ele próprio acredita que a sua personalidade foi mais moldada pela educação possessiva e espalhafatosa da mãe do que pelo
«Vermelho 28», o esperma codificado que ela escolheu do
catálogo do Dr. Graham.
Atormentado pelas imposições do seu passado,
vegetariano curioso de práticas religiosas alternativas, tocador de
cítara e fanático da saga Harry Potter, Doron
Blake tem hoje 27 anos, é um jovem tímido com tendência
para gaguejar e está no Facebook, onde tem 86 amigos. Neste seu
pequeno refúgio da aldeia global chegou a definir-se como «a failed prodigy».
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"são elas que têm os
filhos"
Os jornalistas que relatam as mais recentes
entrevistas com Doron Blake são unânimes em considerá-lo um virtuoso
com tendência para se subestimar. Voluntária ou involuntariamente,
esta particularidade pode induzir uma neurose resultante da pressão
familiar centrada nos desejos da mãe. Afton Blake, por seu lado, não
pode sentir-se culpada. Exactamente por ser mãe: na própria
acepção de Lacan, as mulheres nunca são perversas, porque são elas
que têm os filhos.
"o seu próprio destino"
Courtney Ramm, uma descontraída bailarina
de 19 anos que vive actualmente em Nova Iorque, é outra das crianças
saídas do laboratório do Dr. Graham. Como se tivesse alguma vez lido
o terapeuta francês Michel Silvestre (La neurosis infantil segun Freud, 1989: «é
preciso que a criança resolva a sua neurose tranquilamente...»), aquilo que a separa de Doron Blake é a capacidade
para entender que a felicidade reside em saber descolar o sujeito do
seu lugar de 'sintoma' na família, para poder seguir o seu próprio
destino.

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