o problema
da habitação
eu: «vem aí a primavera...»
o Ruy:
«espero pelo verão como por outra vida.»
eu:
«e já parece que o verão vai acabar.»
joaquim: «a minha mãe viajou de bela a velha em segundos.»
Há dias
assim, em que
preciso da poesia que posso como de um pardieiro no meio dos arranha-céus
de uma cidade demasiado grande.

Grua — Hora do
Nascente
Da série Três Respostas Concretíssimas ao
Problema da Habitação, 1981.
ANTERO DE
ALDA
em memória de Ruy
Belo
Joaquim
Jorge Carvalho (Ribeira de Pena, Fevereiro de 2010), escreveu
algures mais ou menos isto: «Comprei casa com empréstimo bancário. Pus nela as minhas poupanças, a minha ideia de lugar amável, os meus livros, a minha família. Depois, a casa foi envelhecendo e os juros da Euribor foram subindo. Por ser tão custoso mantê-la, é
muito improvável não desistirmos dela, mas é igualmente inviável não
termos uma habitação.
O preço de viver não se mede apenas pelo spread, pelo Banco Central Europeu ou pelo valor do crude. Basta dizer que o Verão vai acabar, que a minha mãe viajou de bela a velha em segundos, que o meu pai morreu no ano passado antes de falarmos, que já me vai faltando a ingenuidade essencial de acreditar...»
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das
outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala para sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a
pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de
respiração
Oh as casas as casas as casas
RUY BELO
O Problema da Habitação
1962
Em 1984 fiz
na Escola Superior de Belas Artes do Porto uma exposição com o
título «Três Respostas Concretíssimas ao Problema da
Habitação...», sabendo já do Ruy e de que uma casa é esse lugar onde guardamos
o nosso corpo e o que trazemos embrulhado nele depois de despidos de
tudo o que não é essencial. Fazia parte um Processo Disciplinar
recolhido nos arquivos de uma (então) conhecida empresa de construção civil:
Processo Disciplinar Nº 182-A
Aos 21 de Maio de 1982, nos escritórios da x,
sobre a matéria dos autos à margem identificados em que é arguido
y, o mesmo
declarou que o z,
por andar zangado com o seu pai, também trabalhador da firma,
disse-lhe que a mãe dele era uma puta, ao que o declarante retorquiu
que puta era a mãe dele.
Em
seguida o z
atirou-lhe uma pá, com violência, que só não o atingiu por se ter
desviado para trás de um pilar. Em seguida chegou-se junto do
declarante e deu-lhe um murro na cabeça.
y (1)
___
(1) Assinatura de y
ANTERO DE ALDA
Da série Três Respostas Concretíssimas ao Problema
da Habitação
1982
Joaquim
escreveu ainda: «Poucos versos foram capazes, como os de Ruy
Belo, de cruzar a frágil terrenidade da existência com uma espécie
de Absoluto lindo que é esta ideia de tudo talvez ter um sentido. De
haver talvez formosura para lá da usura. De haver talvez Tejo para
lá do Tédio. De haver talvez Belo para lá de Ruy.»

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