Defendi no passado sábado [8 de Junho], na Biblioteca
Municipal de Amarante, a criação de um museu para o Eduardo. Certo
de que, como muita gente ao longo de séculos, é necessário
reconciliar o pensamento — ou a realidade — com a poesia, contrariando
a ideia platónica muito bem traduzida por María Zambrano (A Metáfora
do Coração, Assírio & Alvim, 1993), de que «perante a
justiça, a poesia representa o engano.»
Afinal, é da mais
elementar justiça celebrar «a poética da imagem» de Eduardo Teixeira
Pinto.
foto EDUARDO TEIXEIRA PINTOOs Últimos, c. 1955.
"Os últimos" são as três figuras principais de um quadro em volta da
Praça da República (mais conhecida por Largo de S. Gonçalo),
emoldurada pelo mosteiro, os claustros e a varanda dos reis, o
Tâmega, a ponte velha e a Igreja de S. Domingos (ou Igreja dos
Aflitos), e ainda o Café-Bar, que compõem o magnífico centro
histórico de Amarante. Mesmo a hora tardia (o relógio da
torre assinala meia-noite menos vinte), eles resistem aos sinais de
um inverno húmido, com os reflexos e o brilho das pedras da calçada,
e também a vertical indumentária dos homens, em levitação, que dão a perceber que
não se tratava de um fogacho de lua num Agosto de gota e de mosca. O
cenário é iluminado por dois candeeiros públicos, com halos de
orvalho ou de névoa, e ainda um foco de luz que já não existe, mas
que nos anos (19)50 incendiava o relógio e a silhueta da igreja e ajudava o
fotógrafo no milagre da criação.
Usou-se uma máquina Rolleicord V, com uma objectiva Xenar 3,5
e um filme Kodak Tri-X, provavelmente de 100 ASA (em vez dos
habituais 400, pois percebe-se aqui uma estranha limpidez), 11 de
abertura do diafragma e 2 segundos de exposição, sem a ajuda do
tripé porque a mão firme do Eduardo Teixeira Pinto era secundada por um nariz
carnudo onde a máquina se fixava.
"Os últimos" (os últimos a abandonar o café e ainda em amena
cavaqueira) são o senhor Joaquim Coelho Oliveira (ainda vivo,
nascido em 1933 e aqui apanhado com os seus 22 anos, à esquerda),
Maurício Sampaio Machado (ao centro) e Manuel Luís Coelho (mais
conhecido por Luisinho "do Osório").
O táxi (ou carro de praça, como lhe chamavam) é um Ford
V8 100Cv Coupé Super Deluxe, provavelmente de 1945, com a matrícula
AH-11-69, propriedade de dois dos três irmãos
Queiroz: Emanuel, Rodrigo e Belchior. Rodrigo era pai do senhor
José Ismael Queirós e avô da professora Anabela Queirós Magalhães,
indefectíveis da actual tertúlia amarantina.
Por esta altura estava prestes a fechar-se o café, e dali haveriam
de sair dentro de pouco tempo a senhora Dona Maria José Queiroz e o seu
marido, o Belchior. Entravam no carro e seguiam para casa,
poucos metros acima, pela 5 de Outubro até à
rua da cadeia.
A fotografia concorreu ao prémio
"Popular Photography", de Nova Iorque, em 1956.
Ó Portugal, se
fosses só três sílabas,
linda vista para o
mar,
Minho verde,
Algarve de cal,
jerico rapando o
espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços
com um vento
testarudo, mas
embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o
sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi
coloquial,
a rechinante
sardinha,
a desancada
varina,
o plumitivo
ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa
amendoada
duns olhos
pestanítidos,
se fosses só a
cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão
asmático das praias,
o grilo
engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na
parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se
fosses só três sílabas
de plástico, que
era mais barato!
Doceiras de
Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de
Viana, toureiros da Golegã,
não há
“papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a
cores na minha prateleira,
alvura arrendada
para o meu devaneio,
bandarilha que
possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão
que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso,
fome sem entretém,
perdigueiro
marrado e sem narizes, sem
perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de
todos nós...
ALEXANDRE
O'NEILL
Papos de Anjo do meu derriço...
Derriço pode querer dizer,
na
acutilante metáfora de O'Neill, paixão ou
pequenez. De uma destas duas interpretações devem os amarantinos
recolher inspiração para criarem "um museu para o
Eduardo", convictos de que se o fotógrafo tivesse nascido em Lisboa
seria um dos maiores do mundo.
EDUARDO TEIXEIRA PINTO
A Poética da Imagem #12
fotografias
_______
"Eduardo Teixeira Pinto"
Eduardo Teixeira Pinto (1933-2009) nasceu em Amarante. Começou a
tirar as suas primeira fotografias muito cedo, ainda no tempo dos
estúdios da Foto Arte, propriedade da família, e herdou do seu pai —
também fotógrafo — o prazer de fotografar. A sua longa experiência
de toda uma vida e o seu olhar poético sobre a realidade fizeram de
si um dos melhores e mais galardoados fotógrafos portugueses do
século XX. A sua obra aborda diversos temas, com destaque para a
Natureza e a figura humana, que tão bem soube conciliar. Em 2010,
numa edição póstuma, publicou-se o livro A Poética da Imagem,
que constitui uma primeira recolha do seu imenso espólio
fotográfico.
Papos de anjo são doces típicos portugueses, da tradição de doces conventuais, também enraizada em
Amarante desde o séc. XIII. Feitos à base de gemas de ovos, conta uma lenda
antiga que as freiras
clarissas utilizavam as claras dos ovos para ajudar a engomar a roupa
e serviam-se depois das gemas para confeccionarem os papos de anjo.
Em Évora, Viseu e na Ilha Terceira, nos Açores, os papos de anjo são
feitos com calda de açúcar, em Mirandela com doces de frutos, e em
Amarante, desde os tempos do Convento de Santa Clara, com miolo de amêndoa,
untados com manteiga, recheados com gemas de ovo, dobrados em folhas
de obreia (papel de hóstia) e
polvilhados com açúcar. Calda de aguardente e canela, leite de cabra ou
de vaca,
doce de cereja e ginjinha são outros ingredientes das imensas
variedades de papos de anjo em Portugal e no Brasil.
"Convento de Santa Clara de Amarante"
Dá-se o caso de Amarante possuir um
convento de freiras clarissas (séc. XIII) e um mosteiro de frades
dominicanos (séc. XVI), este, fundado num antigo eremitério, onde é
a actual igreja de S. Gonçalo, com uma arquitectura de tal forma
virtuosa que terá servido de inspiração para muitas construções
religiosas na vizinha Galiza.
Fundado por volta de 1227 por D. Mafalda Sanches (ou Infanta Santa Mafalda de Portugal, filha
de D. Sancho I, também Rainha de Castela, beatificada em 1793 por
Pio VI), o Convento de Santa Clara de Amarante — onde terão sido
confeccionados os primeiros papos de anjo — foi lugar de
recolhimento de freiras mantelatas, da Ordem Terceira. Foi destruído pela
barbárie dos soldados de Napoleão, em 1809, e extinto por decreto de
6 de Maio de 1867, quando ali já só vivia a sua última abadessa,
madre Ana Augusta de Lacerda Castelo Branco, que transitou para o Convento de Santa Clara do Porto. Depois, o Convento de Santa
Clara de Amarante foi transformado em Casa da Cerca e
actualmente acolhe a Biblioteca Dr. Albano Sardoeira, Arquivo Municipal.
Consulta: DANIEL JOSÉ SOARES RIBEIRO, Mosteiro de Santa Clara de Amarante
— História, Património e Musealização. Coimbra, 2011. [descarregar
PDF - 17Mb]