o significante mata?

foto JAMES
NACHTWEY Hospital de Mornay, Darfur,
2004.

foto ED KASHI
Soldado americano da guerra do Iraque, Iowa,
2005.
É violenta a essência das
fotografias de Ed Kashi, porque ele tem essa qualidade rara de
respeitar a essência da realidade que capta. Do outro lado, Nachtwey
— um dos maiores fotógrafos de guerra de sempre — possui esse dom
ímpar de enfatizar a linguagem para nos mostrar um inferno
fotogénico. O significante interfere, mata a realidade?
«Symbol
«She was pretty and had a name
Unlike the victims of your wars
Who are nameless and faceless
Both before and after
They are blown to bits.»
MARIO CUTAJAR
«Ó vós que tendes inteligência sadia, atentai à doutrina que se esconde sob o véu dos versos estranhos.»
DANTE
Inferno,
IX, 61-63.
A propósito das fotografias de Eugène Atget, John Szarkowski disse um dia que elas eram
«aquilo que um fotógrafo de génio fazia quando chegava ao céu».1
Sobre James Nachtwey e as suas fotografias, Mario Cutajar diz que
«he has made hell photogenic» — ele faz o inferno fotogénico...
Entre o céu e o inferno
viajam, muitas vezes, os grandes fotojornalistas: um
dia no cenário horrível duma guerra e no dia seguinte nas capas dos
mais importantes jornais e revistas do mundo inteiro.
Mais do que o elogio pessoal
à obra de Atget, o comentário de Szarkowski (também ele fotógrafo, curador e director de Fotografia do MoMA—Museum of Modern Art
of New York, falecido em 2007) atribui à Fotografia uma indiscutível dimensão estética. Cutajar (pintor e crítico radicado em Los Angeles), por sua vez, lembra-nos que grande parte da
actual produção fotográfica, carregada com o peso da linguagem, pode
esconder realidades profundamente dolorosas. Em quem devemos
acreditar?
Pelos jornais e revistas, entre texto e imagens,
ficamos a saber mais ou menos o que se passa pelo mundo. Mas, porque
não estamos presentes, é-nos difícil decifrar (como escreve Dante) «a doutrina que se esconde sob o véu dos versos estranhos.»
Tal como é difícil reconhecer alguém que, «sem nome e sem rosto»
como quase todas as vítimas da guerra (nos versos de Catujar), é
varrido pela voracidade dos símbolos ou pela habilidade dos píxels.
Terá razão Lacan quando diz que «o significante
mata»?
relacionado [
MAGNÍFICA GUERRA!
]
______
«Já reparaste que tens o mundo
inteiro
dentro da tua cabeça
e esse mundo em brutal compressão
dentro da tua cabeça
é o teu mundo
e já reparaste que eu tenho o
mundo inteiro
dentro da minha cabeça
e esse mundo em brutal compressão
dentro da minha cabeça
é o meu mundo
o qual neste momento não te está a
entrar pelos olhos
mas através dos nomes
pois o que tu tens dentro da tua
cabeça
e o que eu tenho dentro da minha
cabeça
são os nomes do mundo em brutal
compressão
como um filtro ou coador
de forma que nem és tu que
conheces o mundo
nem sou eu que conheço o mundo
mas os nomes que tu conheces é que
conhecem o mundo
e os nomes que eu conheço é que
conhecem o mundo
o qual entra em ti e o qual entra
em mim
através dos nomes que já tem...»
ALBERTO
PIMENTA
O Silêncio dos Poetas, 1978.
Dizem que há o grau zero da escrita (Fernando Pessoa — ou melhor: Álvaro de Campos — terá escrito o despojado e longo poema 'Tabacaria' numa só tarde, sem parar e por impulso, e essa é sem dúvida uma das obras maiores da literatura mundial). Dizem também que há o grau zero da poesia (Alberto Pimenta — para citar outro exemplo português: 'O Silêncio dos Poetas', 1978 — refere que
«a manifestação estética integral terá que ocorrer no domínio do silêncio, porque para aquém ou além dele é tudo em última análise compromisso»). Haverá, ainda, o grau zero da comunicação? Corresponderá a este, na arte das imagens, o grau zero da fotografia? A haver, corresponderá a essa (in)comunicação — a guerra, em certo sentido, é uma forma de não comunicação — uma expressão fotográfica igualmente tão despojada que se compare com a ausência de escrita, a ausência de poesia e, em suma, a ausência de arte?
«O poder das imagens pode mudar a mentalidade das pessoas e interferir sobre os rumos da condição humana»,
diz Ed. Kashi, revendo-se na dimensão crítica documental das suas
fotografias.
Sartre tem uma perspectiva apaziguadora:
«Calar-se não é ser mudo, é recusar falar, portanto falar ainda.»
(J. P. Sartre, Qu' est-ce que la Literature?, 1948).
Corroborada por Steiner: «Na maior parte da poesia moderna, o silêncio representa as exigências do ideal; falar é dizer menos.»
(Georges Steiner, Language and Silence, 1967).
Em suma, como diz Alberto Pimenta (1978, p. 5), «A arte tem também o carácter duplo dos símbolos: é e representa.»
1 — Pedro Calado,
EXPRESSO/Revista, 7 de Outubro de 1989.

anterior
|
início
| seguinte
|