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porcos e cinocéfalos —
a fábula do poder
«Talvez tenhamos de criar uma forma de democracia representativa diferente daquela que nos serviu nos últimos 300 anos, um equilíbrio entre Estado e protesto.
(...) Para isso, é preciso fantasia.»
U MBERTO
ECO, «Der Spiegel», 2001.
Trad. Marcelo Rondinelli

São
Cristóvão cinocéfalo numa iluminura no Benaki Museum de Atenas (séc.
XVI)
e
The Era of Communism de
JACKO VASSILEV
(1988).
Etimologicamente, o termo «monstro» deriva de «monstrare», o que quer dizer advertir ou avisar. Assim, segundo certas correntes de pensamento, as figuras
monstruosas do imaginário greco-romano tinham uma função profilática, que consistia em apelar à virtude com a ameaça do
terror.
A democracia, enquanto decifração (ou
inversão) das fantasias obscurantistas, ensina-nos hoje que do
terror enquanto fábula do poder não advém virtude possível.
1. Os monstros, aterrorizando os crentes, acautelavam-lhes os
vícios...
Segundo Guilherme de Ockham, crítico do
plenitudo protestatis (ou o Dictatus Papae, poder
papal absoluto), no estado primitivo os homens possuíram e exerceram
um direito comum sobre todos os bens terrenos. Após a queda do mito
do Jardim do Éden (naquela que foi uma das mais
célebres efabulações, na figura de uma serpente), a construção de uma forma de poder baseada
no direito de propriedade surgiu por imposição divina,
devendo-se igualmente a Deus o poder atribuído aos homens para
estabelecerem uma classe de governantes com a tarefa de
regularem da melhor maneira a convivência social, política e
económica. O poder seria, portanto, uma transmissão de Deus, cuja
presença se impunha até junto dos maiores exércitos, como os
que serviam o Império Romano e Carlos Magno.
A redefinição dos escritos
bíblicos através do Novo Testamento leva-nos a concluir que o poder
atribuído ao apóstolo Pedro — «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus...» (Mateus 16: 19)
— já não reduz os fiéis «à escravidão ante o pontífice»,
como escreveu Ockham. E Deus não disse «Faz de minhas ovelhas o que te aprouver, que venha a
redundar em teu proveito e honra», mas sim «Apascenta minhas ovelhas»
(João 21: 17),
como se dissesse: «Faz o que
vem em favor da utilidade e da necessidade delas, e sabe que não foste colocado à frente delas para teu
proveito, mas para proveito delas.»
A verdade é que, segundo o filósofo francês recentemente falecido
Georges Gusdorf, «a Idade Média viveu numa espécie de presente eterno»,
talvez devido ao generalizado analfabetismo que potenciava o obscurantismo. E para dar mais
sentido à governação dividida entre Deus e (alguns) homens, ou para
legitimar os exageros dos eleitos em nome das doutrinas da Igreja,
enquanto os santos subiam aos céus na forma de anjos os pecadores
desciam aos infernos na forma de monstros, cujas sombras serviam em
painéis e iluminuras para dar mais luz à linhagem de deuses e imperadores. Esta teoria
era explicada por
Alexandre de Hales: «as sombras contribuem para fazer
resplandecer as luzes» (segundo o resumo de Umberto Eco em Storia della Bellezza,
2004).
Em suma, compreende-se que desde tempos imemoriais há
uma ordem superior que se alimenta não do fruto do seu
trabalho, mas mais exactamente do fruto do trabalho dos seus
súbditos, que para tal são imprescindíveis. E assim
talvez se compreenda porque, segundo certas teorias de
tradição cristã, os monstros
nasceram por vontade divina e eram domados pelos santos: aterrorizando os crentes,
acautelavam-lhes os vícios...
2. Revolução (e traição) dos bichos
A História tem passo largo, mas recua muitas vezes.
No tempo de Carlos Magno tinha-se como certo que os
segmentos de luz das
auroras polares não eram mais do que raios de fogo que saltavam
dos choques das armas de feiticeiros voadores. Os mares e os céus
estariam prenhes de unicórnios, leões alados, dragões e grifos
descendentes do estranho amor entre lobos e águias bicéfalas (deduzido de
Afonso Escragnolle Taunay: 'Zoologia Fantástica do Brasil', 1999).
As viagens dos navegadores de Quinhentos, que
delimitaram a Terra a uma esfera de continentes e água e venceram
adamastores e mostrengos (de Camões e Pessoa, na literatura lusa) que os ameaçavam nos promontórios, contribuíram
para desmistificar a brutalidade com que eram desenhadas certas
personagens carregadas de anamorfoses, como o famoso cinocéfalo com
cabeça de cão proveniente da Etiópia ou da Índia. Duzentos anos
antes, ao mártir São Cristóvão — considerado originário de
uma tribo oriental de canibais e convertido à religião através do
baptismo por um bispo da Alexandria — não fora concedido mais do
que um corpo de homem enxertado na sua desgraçada cabeça canina.
Já no século XX, a partir da interpretação
do d'O Triunfo dos Porcos de Orwell (Animal Farm, 1945,
ou A Revolução dos Bichos na tradução brasileira), definitivamente
ficou confundida a besta com o homem.
Tido como uma crítica ao comunismo (conforme o
pretendiam os países do fastidioso mundo ocidental no tempo da
Guerra Fria), depois do colapso do capitalismo o romance perdura
como uma lição contra todas as formas de autoritarismo, como aliás o
haveria de ser ainda o seu outro romance premonitório: 1984 (Nineteen
Eighty-Four, 1949). [Leia-se como se quiser, George Orwell foi sepultado num cemitério de Londres sem honra e sem
glória.]
3. A fábula do poder
Mais do que uma fábula humana, as construções de alteridade baseadas no bestiário
de origem pré-cristã são uma fábula do
poder.
Resgatadas as diferenças entre o belo e o horrível,
entre o
civilizado e o selvagem, entre o abençoado e o proscrito, a marcha
do tempo mostra-nos que somos agora governados por bichos
com os mesmos ancestrais sentimentos — o «ethos» platónico — de
ironia, soberba e malvadez dos homens do passado. Como no bestiário da
mitologia grega, onde já o falacioso Cerberus guardava com as suas
múltiplas cabeças caninas o reino subterrâneo dos mortos,
convidando (com hipócrita simpatia) as almas a entrarem e impedindo-as
(com requintes de brutalidade) de lá saírem.
Porcos ou cinocéfilos, os novos governantes
que regulam agora a nossa convivência (a nossa vida, o nosso trabalho e as
nossas distracções) fazem mais pelo seu próprio proveito
do que pelo proveito comum.
É preciso inteligência, inventar novas
fantasias.
______
Guilherme de Ockham (1285-1347):
frade franciscano, originário da cidade inglesa de Ockham, conhecido
por denunciar aqueles que se serviam da religião para colocar em
causa os ideais da liberdade.
Dictatus Papae: conjunto de 27
proposições eclesiásticas cuja origem é atribuída por alguns
historiadores a Gregório VII (1073-1085). Segundo a proposição IX («Quod solius pape pedes omnes principes deosculentur»),
todos os príncipes devem beijar os pés do Papa, e segundo a
proposição XII («Quod illi liceat imperatores deponere»), ao Papa é lícito depor os imperadores.
Georges Gusdorf (1912-2000): «A Idade
Média viveu numa espécie de presente eterno: o esquema litúrgico da
história sagrada, indefinidamente repetido, fornecia o quadro da
vida social e da existência pessoal. Jamais a cidade dos homens se
quis tão exactamente idêntica à Cidade de Deus, que lhe serve de
protótipo escatológico, bloqueando em si o passado, o presente e o
futuro.» 'Les Origines des Sciences Humaines', Paris, 1967.
Reputado filósofo francês, Gusdorf é habitualmente
reconhecido pela pertinência das suas teorias pedagógicas: «O mestre é aquele que ultrapassou a concepção de uma verdade como fórmula universal, solução e resolução do ser humano, para se elevar à ideia de uma verdade como procura.»
'Professores Para Quê?', S. Paulo, 1970.
Adamastor (Luís de Camões): «Tão grande era de membros que bem posso/
Certificar-te que este era o segundo/
De Rodes estranhíssimo colosso,/
Que um dos sete milagres foi do mundo./ C'um tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/
Que pareceu sair do mar profundo,/
Arrepiam-se as carnes e o cabelo/
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!» — 'Lusíadas', Canto V.
Mostrengo (Fernando Pessoa): «O mostrengo que está no fim do mar/ Na noite de breu ergueu-se a voar;/
À roda da nau voou três vezes,/
Voou três vezes a chiar,/
E disse: Quem é que ousou entrar/ Nas minhas cavernas que não desvendo,/
Meus tectos negros do fim do mundo?...» — 'Mar Português'.
O «ethos» platónico: segundo Platão
— 'A República', séc. IV a.C. —, qualquer regime político não é mais
do que expressão do carácter («ethos» no grego e «morale» no latim) humano,
a que estão subjacentes os sentimentos. Assim, grosso modo, a
Monarquia é caracterizada pela ordem, hierarquia e tradição; a
Oligarquia pela tendência a pertencer a um grupo e a ele favorecer;
a Timocracia pelo egoísmo; a Tirania pela fúria e violência; e a
Democracia pela igualdade, fraternidade e solidariedade.

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