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  Post 034 -  Junho de 2010  

 

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porcos e cinocéfalos —

a fábula do poder

 

 

 

«Talvez tenhamos de criar uma forma de democracia representativa diferente daquela que nos serviu nos últimos 300 anos, um equilíbrio entre Estado e protesto. (...) Para isso, é preciso fantasia.»

UMBERTO ECO, «Der Spiegel», 2001.

Trad. Marcelo Rondinelli

 

 

 

São Cristóvão cinocéfalo numa iluminura no Benaki Museum de Atenas (séc. XVI)

e The Era of Communism de JACKO VASSILEV (1988).

 

Etimologicamente, o termo «monstro» deriva de «monstrare», o que quer dizer advertir ou avisar. Assim, segundo certas correntes de pensamento, as figuras monstruosas do imaginário greco-romano tinham uma função profilática, que consistia em apelar à virtude com a ameaça do terror.

A democracia, enquanto decifração (ou inversão) das fantasias obscurantistas, ensina-nos hoje que do terror enquanto fábula do poder não advém virtude possível.

 

 

 

1. Os monstros, aterrorizando os crentes, acautelavam-lhes os vícios...

 

Segundo Guilherme de Ockham, crítico do plenitudo protestatis (ou o Dictatus Papae, poder papal absoluto), no estado primitivo os homens possuíram e exerceram um direito comum sobre todos os bens terrenos. Após a queda do mito do Jardim do Éden (naquela que foi uma das mais célebres efabulações, na figura de uma serpente), a construção de uma forma de poder baseada no direito de propriedade surgiu por imposição divina, devendo-se igualmente a Deus o poder atribuído aos homens para estabelecerem uma classe de governantes com a tarefa de regularem da melhor maneira a convivência social, política e económica. O poder seria, portanto, uma transmissão de Deus, cuja presença se impunha até junto dos maiores exércitos, como os que serviam o Império Romano e Carlos Magno.

 

A redefinição dos escritos bíblicos através do Novo Testamento leva-nos a concluir que o poder atribuído ao apóstolo Pedro — «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus...» (Mateus 16: 19) — já não reduz os fiéis «à escravidão ante o pontífice», como escreveu Ockham. E Deus não disse «Faz de minhas ovelhas o que te aprouver, que venha a redundar em teu proveito e honra», mas sim «Apascenta minhas ovelhas» (João 21: 17), como se dissesse: «Faz o que vem em favor da utilidade e da necessidade delas, e sabe que não foste colocado à frente delas para teu proveito, mas para proveito delas.»

 

A verdade é que, segundo o filósofo francês recentemente falecido Georges Gusdorf, «a Idade Média viveu numa espécie de presente eterno», talvez devido ao generalizado analfabetismo que potenciava o obscurantismo. E para dar mais sentido à governação dividida entre Deus e (alguns) homens, ou para legitimar os exageros dos eleitos em nome das doutrinas da Igreja, enquanto os santos subiam aos céus na forma de anjos os pecadores desciam aos infernos na forma de monstros, cujas sombras serviam em painéis e iluminuras para dar mais luz à linhagem de deuses e imperadores. Esta teoria era explicada por Alexandre de Hales: «as sombras contribuem para fazer resplandecer as luzes» (segundo o resumo de Umberto Eco em Storia della Bellezza, 2004).

 

 

 

Em suma, compreende-se que desde tempos imemoriais há uma ordem superior que se alimenta não do fruto do seu trabalho, mas mais exactamente do fruto do trabalho dos seus súbditos, que para tal são imprescindíveis. E assim talvez se compreenda porque, segundo certas teorias de tradição cristã, os monstros nasceram por vontade divina e eram domados pelos santos: aterrorizando os crentes, acautelavam-lhes os vícios...

 

 

 

 

2. Revolução (e traição) dos bichos

 

A História tem passo largo, mas recua muitas vezes.

 

No tempo de Carlos Magno tinha-se como certo que os segmentos de luz das auroras polares não eram mais do que raios de fogo que saltavam dos choques das armas de feiticeiros voadores. Os mares e os céus estariam prenhes de unicórnios, leões alados, dragões e grifos descendentes do estranho amor entre lobos e águias bicéfalas (deduzido de Afonso Escragnolle Taunay: 'Zoologia Fantástica do Brasil', 1999).

 

As viagens dos navegadores de Quinhentos, que delimitaram a Terra a uma esfera de continentes e água e venceram adamastores e mostrengos (de Camões e Pessoa, na literatura lusa) que os ameaçavam nos promontórios, contribuíram para desmistificar a brutalidade com que eram desenhadas certas personagens carregadas de anamorfoses, como o famoso cinocéfalo com cabeça de cão proveniente da Etiópia ou da Índia. Duzentos anos antes, ao mártir São Cristóvão — considerado originário de uma tribo oriental de canibais e convertido à religião através do baptismo por um bispo da Alexandria — não fora concedido mais do que um corpo de homem enxertado na sua desgraçada cabeça canina.

 

 

Já no século XX, a partir da interpretação do d'O Triunfo dos Porcos de Orwell (Animal Farm, 1945, ou A Revolução dos Bichos na tradução brasileira), definitivamente ficou confundida a besta com o homem.

Tido como uma crítica ao comunismo (conforme o pretendiam os países do fastidioso mundo ocidental no tempo da Guerra Fria), depois do colapso do capitalismo o romance perdura como uma lição contra todas as formas de autoritarismo, como aliás o haveria de ser ainda o seu outro romance premonitório: 1984 (Nineteen Eighty-Four, 1949). [Leia-se como se quiser, George Orwell foi sepultado num cemitério de Londres sem honra e sem glória.] 

 

 

 

 

3. A fábula do poder

 

Mais do que uma fábula humana, as construções de alteridade baseadas no bestiário de origem pré-cristã são uma fábula do poder.

 

Resgatadas as diferenças entre o belo e o horrível, entre o civilizado e o selvagem, entre o abençoado e o proscrito, a marcha do tempo mostra-nos que somos agora governados por bichos com os mesmos ancestrais sentimentos — o «ethos» platónico — de ironia, soberba e malvadez dos homens do passado. Como no bestiário da mitologia grega, onde já o falacioso Cerberus guardava com as suas múltiplas cabeças caninas o reino subterrâneo dos mortos, convidando (com hipócrita simpatia) as almas a entrarem e impedindo-as (com requintes de brutalidade) de lá saírem.

 

Porcos ou cinocéfilos, os novos governantes que regulam agora a nossa convivência (a nossa vida, o nosso trabalho e as nossas distracções) fazem mais pelo seu próprio proveito do que pelo proveito comum.

 

É preciso inteligência, inventar novas fantasias.

 

______

Guilherme de Ockham (1285-1347): frade franciscano, originário da cidade inglesa de Ockham, conhecido por denunciar aqueles que se serviam da religião para colocar em causa os ideais da liberdade.

 

Dictatus Papae: conjunto de 27 proposições eclesiásticas cuja origem é atribuída por alguns historiadores a Gregório VII (1073-1085). Segundo a proposição IX («Quod solius pape pedes omnes principes deosculentur»), todos os príncipes devem beijar os pés do Papa, e segundo a proposição XII («Quod illi liceat imperatores deponere»), ao Papa é lícito depor os imperadores.

 

Georges Gusdorf (1912-2000): «A Idade Média viveu numa espécie de presente eterno: o esquema litúrgico da história sagrada, indefinidamente repetido, fornecia o quadro da vida social e da existência pessoal. Jamais a cidade dos homens se quis tão exactamente idêntica à Cidade de Deus, que lhe serve de protótipo escatológico, bloqueando em si o passado, o presente e o futuro.» 'Les Origines des Sciences Humaines', Paris, 1967.

Reputado filósofo francês, Gusdorf é habitualmente reconhecido pela pertinência das suas teorias pedagógicas: «O mestre é aquele que ultrapassou a concepção de uma verdade como fórmula universal, solução e resolução do ser humano, para se elevar à ideia de uma verdade como procura.» 'Professores Para Quê?', S. Paulo, 1970.

 

Adamastor (Luís de Camões): «Tão grande era de membros que bem posso/ Certificar-te que este era o segundo/ De Rodes estranhíssimo colosso,/ Que um dos sete milagres foi do mundo./ C'um tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/ Que pareceu sair do mar profundo,/ Arrepiam-se as carnes e o cabelo/ A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!» — 'Lusíadas', Canto V.

Mostrengo (Fernando Pessoa): «O mostrengo que está no fim do mar/ Na noite de breu ergueu-se a voar;/ À roda da nau voou três vezes,/ Voou três vezes a chiar,/ E disse: Quem é que ousou entrar/ Nas minhas cavernas que não desvendo,/ Meus tectos negros do fim do mundo?...» — 'Mar Português'.

 

O «ethos» platónico: segundo Platão — 'A República', séc. IV a.C. —, qualquer regime político não é mais do que expressão do carácter («ethos» no grego e «morale» no latim) humano, a que estão subjacentes os sentimentos. Assim, grosso modo, a Monarquia é caracterizada pela ordem, hierarquia e tradição; a Oligarquia pela tendência a pertencer a um grupo e a ele favorecer; a Timocracia pelo egoísmo; a Tirania pela fúria e violência; e a Democracia pela igualdade, fraternidade e solidariedade.

 

 

 

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