[
revolução V ]
as mães
do Alcorão
«O Céu encontra-se sob os pés da tua mãe.»
MAOMÉ
«Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens...»
PAUL
ÉLUARD

Sayda al-Manahe com a fotografia
do filho Hilme al-Manahe,
assassinado em Tunis a 13 de
Janeiro de 2011.
foto PETER HAPAK/TIME
Magazine Dez. 2011
Talvez inspirado no dramático Übermensch de Nietzsche (o
super-homem plasmado em "Assim Falou Zaratustra", 1883), o inefável Francis Fukuyama ("O
Fim da História e o Último Homem", 1992), preconizava um
mundo sem equívocos, ou o homem no seu último estado de conforto, a partir do
advento (trágico, afinal) do
liberalismo de finais da década de 80. Derrida ("Espectros de
Marx...", 1994) foi um dos poucos inconformados. A
verdade é que Fukuyama fundamenta toda a sua teoria na mesma ilusão
da superioridade ocidental que caracteriza os ideólogos do
capitalismo, subestimando o marxismo, o mundo muçulmano e... as
mulheres. Na óptica desta utopia, todas as manifestações e todos os
protestos pareciam obsoletos, mas a degeneração do comércio livre, o
advento da Primavera Árabe e a lição das mães do Alcorão vieram
reacender a História.
Em Dezembro de 2011 a TIME Magazine
elegeu «the protester» como
Figura do Ano, em homenagem a todos quantos nos seus lugares do
mundo encontram ainda razões para contestar. Entre os mais de 100 manifestantes fotografados por
Peter Hapak para a revista norte-americana, contam-se duas mães
tunisinas, Mannoubia Bouazizi e Sayda al-Manahe, chamadas a falar em
nome dos filhos que perderam. Sayda reclama: «O meu filho é agora
um símbolo. Ele deu a vida para que nós possamos ter liberdade.»
O cristianismo e o islamismo estão
estreitamente ligados pela devoção à figura da Virgem Maria. Assim
se referem a Bíblia («Bendita és tu entre as mulheres e bendito
o fruto do teu ventre!» — Lucas 1:42) e o Alcorão («Ó Maria, Deus escolheu-te e
purificou-te e elegeu-te sobre as mulheres do mundo.» — Surata 3:42). Porém, enquanto os cristãos subestimam
consideravelmente todas as outras mulheres («Porque eis que
hão-de vir dias em que dirão: bem-aventuradas as estéreis, e os
ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram!» — Lucas
23:29), para o Islão «as mulheres são almas gémeas dos homens»
(Maomé), destituídas de todas as fraquezas
que lhe são atribuídas desde a Grécia antiga.
O mundo é mais do que aquilo que nós
sabemos, diz Esther (Haya Harareet) a Judah (Charlton Heston), o
judeu de "Ben-Hur" (1959). Sob os pés das mães do
Alcorão — e da Bíblia, do Tanakh,
dos Vedas... — há ainda muitas verdades para descobrir: muitos filhos sem eira nem beira, muitos homens para
reinventar.
[ revolução IV ] paraíso e brutalidade
_____
"o inefável Fukuyama"
Sobre Yoshihiro Francis Fukuyama (EUA, 1952) disse Ralf Dahrendorf
(Alemanha, 1929-2009): «Ele teve os seus 15 minutos de fama...»
"um mundo sem equívocos?"
Infelizmente,
Jacques Derrida — com Umberto Eco e Jürgen Habermas, entre outros —
protagonizou em 1993 um episódio lamentável de defesa duma «Europa nuclear»,
em torno da Alemanha e da França, para travar a hegemonia
norte-americana ("Após a guerra: o renascimento da Europa", Frankfurter Allgemeine Zeitung, Maio de 2003). Terá sido esse
o erro que nos levou à actual ditadura do eixo
franco-alemão?
Provando, de múltiplas maneiras, que estava ainda longe um mundo sem
equívocos, na altura foi Günter Grass
que se opôs, em nome do multiculturalismo, defendendo um avanço para
as periferias: «O centro da Europa não é Paris, mas sim Praga»
e «a riqueza da cultura europeia reside na sua variedade —
incluindo as suas contradições.» (Deutschlandfunk,
Julho de 2003).
"muitos homens para reinventar"
«Os homens nasceram para se entenderem/ Para se compreenderem para se amarem/
Têm filhos que se tornarão pais dos homens/ Têm filhos sem eira nem beira/
Que hão-de reinventar o fogo/
Que hão-de reinventar os homens/
E a natureza e a sua pátria/
A de todos os homens/
A de todos os tempos.»
PAUL ÉLUARD (Algumas das Palavras, D. Quixote, Lisboa, 2ª edição, 1977, p. 137).
E ainda: «O amor é o homem inacabado» (p. 45). Tradução de António Ramos Rosa.

anterior
|
início
| seguinte
|