o beijo do insecto
[ Leopoldo María Panero ]
[ Quarta-feira, 5 de Março de 2014 ] Morreu Leopoldo María Panero, o louco! Poderemos
agora dormir descansados?
O mundo é um manicómio gigante.

foto: LUIZ ALFREDO Colónia psiquiátrica de
Barbacena, Brasil (1961).
Daniela Arbex
publicou, em Julho de 2013, o livro Holocausto Brasileiro,
sobre o tristemente célebre hospital psiquiátrico de Barbacena,
Minas Gerais. Estima-se que em Barbacena terão morrido, entre 1903 e
os inícios da década de 1980, cerca de 60 mil pessoas, entre
homossexuais, prostitutas, pequenos delinquentes, crianças
abandonadas e simples doentes epilépticos, a maioria dos quais não
apresentava de facto nenhuma característica psicológica que
os levasse a entrar no chamado "comboio dos loucos".
Em 1961, o
fotógrafo Luiz Alfredo fez uma reportagem acerca deste local
tenebroso de onde terão saído quase dois mil corpos para dissecação nas
universidades brasileiras e onde, a certa altura, se tornou
necessário decompor com ácido centenas de pacientes por excesso de
lotação.
No passado dia 3 de Março, quase
trinta anos depois do encerramento da colónia de Barbacena, a
repórter e também escritora Eliane Brum, que prefaciou o livro de
Daniela Arbex, fez para a edição
brasileira do jornal El País
uma reportagem sobre «o momento
perturbador vivido pelo Brasil», a propósito da recente
escalada de violência nas grandes cidades. Em S. Paulo, pouco antes do Carnaval, um homem empurrou uma mulher
para a linha do metro, simplesmente porque
«estava nervoso com o pessoal do mundo», e um grupo de
simpatizantes do clube de futebol local agrediu com uma barra de ferro um adepto do
rival Santos até lhe provocar a morte. Em Sorocaba, um indivíduo foi linchado depois de roubar um frasco de
champô no supermercado. Na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, um homem matou com três
tiros o suspeito de um pequeno assalto, e na mesma cidade um repórter de imagem da TV Bandeirantes
foi assassinado por dois manifestantes
nos protestos de rua do dia 6 de Fevereiro. Ainda no Rio, na noite
de 31 de Janeiro, um
adolescente negro foi acorrentado a um poste com a tranca duma
bicicleta: cortaram-lhe uma orelha e arrancaram-lhe a roupa, o que
por sua vez provocou uma onda de linchamentos...
«A polícia tem de tirar os loucos da rua!»
Como se anunciasse a morte de Deus,
o eufórico taxista que transporta a repórter Eliane Brum
pelas ruas de S. Paulo clama: «A polícia tem que tirar os loucos
da rua!». E talvez por isso, e talvez por se lembrar ainda da história do "comboio dos loucos"
com destino a Barbacena,
Eliane conclui: «O louco não expressa apenas a sua loucura,
ele também denuncia a insanidade da sociedade em que vive...»
«Vosotros, todos vosotros, toda
esa carne que en la calle
se apila, sois
para mí alimento...»
Na passada quarta-feira, 5 de Março,
morreu na ala psiquiátrica do Hospital Rei Juan Carlos I, em Las Palmas de Gran Canaria, Leopoldo María Panero,
65 anos, a maior parte dos quais vividos em hospícios. Luis Alemany, redactor da secção
cultural do jornal El Mundo, chamou-lhe «el suicida crónico»,
porém, o último de uma família de poetas, quase todos eles com
alguma perturbação mental, e escreveu:
«Morreu o nosso Peter Pan, o nosso Artaud, o nosso louco, o nosso intocável, o nosso monstro.»
Ele, que, tal como o seu amigo fotógrafo e também alucinado
Alberto García Alix, poderia dizer: «No me sigas,
estoy perdido».
«Deus está morto... não há mais nada
senão homens» (Sartre). E nada mais se ouvirá senão a voz dele,
«a voz
de Deus num poço tapado» (Álvaro de Campos).
Sou um ninho de
cinza
aonde afluem os
pássaros
procurando o maná
da sombra
a flecha cravada
no poema
o beijo do
insecto.
LEOPOLDO
MARÍA
PANERO
Teoría del miedo, 2000.
____
Leopoldo María
Panero (1948-2014) faleceu apenas seis dias depois da morte de Ana María Moix Meseguer,
escritora e poetisa da Catalunha,
que o jornal El Mundo afirma ter sido o seu eterno amor
impossível.

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