Vi ontem um excerto do filme Viúva Rica Solteira
Não Fica, de José Fonseca e Costa, onde Mariana (Cucha
Carvalheiro) diz o seguinte: «Às mulheres sérias nunca ninguém
conta nada...»
Centrado ainda na relação entre mentira e política (ou
verdade e política, segundo Hannah Arendt), lembrei-me da pergunta
obscena de Derrida, feita numa conferência em S. Paulo, Brasil, em
1995: «A história da mentira, quem ousaria
contá-la?»
mentirosos
Presumo que muita gente sabia, tal como
o presidente da República, que as acções do BPN iriam afundar-se, e
que, contra as expectativas do governador do Banco de Portugal, o
Banco Espírito Santo iria
falir. Presumo que muita gente sabia que o actual primeiro-ministro
iria aumentar impostos, despedir funcionários públicos, cortar
salários e reduzir pensões, contra tudo o que tinha prometido na
campanha eleitoral. Presumo que muita gente
sabia que o
antigo primeiro-ministro, que agora está na cadeia,
era um habilidoso na arte de
deslumbrar, também ele sabedor de que «a verdade que não se opõe nem ao
lucro nem ao prazer humano é por todos os homens bem vinda»
(Hobbes, em Leviatã). Presumo, portanto, que, como terá dito
Nietzsche, a verdade é
«uma sequência de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram
enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem a um povo sólidas, canónicas e obrigatórias.»

FEMEN.ORG, End the European Central Bank dictatorship, Frankfurt, 15 de Abril de 2015.
foto: MICHAEL PROBST/AP
Gozando, pois, da nossa liberdade imaginária
(como pensava Descartes em Meditações, 1641), acomodamo-nos todos com desvelado prazer
a uma certa condição de escravos, e perante a ameaça da transparência
— o
senso-comum, aliado à capacidade que nos resta para nos surpreendermos
—, conspiramos ainda com
todas as nossas forças para permanecer enganados (iludidos), o que
quer dizer: deslumbrados com a mentira.
Afinal, o que é o conhecimento do
mundo? Não poderá o conhecimento do mundo ter como função principal iludir o
indivíduo, ou (mais cruel ainda) levar o
indivíduo a iludir-se a si mesmo?
Vejamos o que dizia Freud (A Censura
dos Sonhos, in Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise, Lição IX, 1916-17): «Desviem o olhar dos indivíduos e considerem a Grande Guerra que ainda devasta a Europa. Pensem na imensa brutalidade, crueldade e mentiras que são capazes de se espalhar pelo mundo civilizado. Acreditais que um punhado de homens ambiciosos e alucinados, sem consciência, poderia ter sucesso a soltar todos esses maus espíritos se os seus milhões de seguidores não partilhassem da sua culpa?»
Se da reflexão freudiana pode concluir-se
que não existe sujeito sem uma boa dose de barbárie e cumplicidade, também
da reflexão cartesiana se deduz que não existe indivíduo sem
uma dose assinalável de mentira e acomodação. E o que diz Derrida? «A história da mentira, quem ousaria contá-la?»
Razão tinha Kierkegaard
(The Point of View of My Work as an Author, 1848): ninguém está
sozinho neste mundo, e quem acredita que está a ser honesto então
está a ser hipócrita.
Afinal, um homem sério é um homem
isolado. A esse, tal como às mulheres sérias, nunca ninguém conta
nada.
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"verdade e política"
Mesmo em obras como Eichmann em Jerusalém (1963), Hannah
Arendt não deixa de colocar a questão da partilha da
verdade com o cidadão comum, nomeadamente quando acusa Eichmann de
não querer compartilhar a terra com o povo judeu: «And just as you supported and carried out a policy of not wanting to share the earth with the Jewish people and the people of a number of other nations.»
Em Verdade e Política (The New Yorker Magazine, 1967), Hannah Arendt escreveu que
«Os
factos e os acontecimentos são coisas infinitamente mais frágeis que os
axiomas, as descobertas e as teorias — mesmo as mais loucamente especulativas — produzidas pelo espírito humano...»
Ora, como muito bem diz Isabel Salema Morgado (A Verdade dos Factos:
Excurso sobre o serviço “FactCheck” no jornalismo político,
Lisboa, 2005), «só alguém que viveu, pensou e escreveu num
tempo marcadamente dominado pela vontade e pelo poder de distorcer
os factos, poderá assumir uma afirmação como aquela.»
Dominados hoje por velhos instintos de superioridade e novos axiomas, descobertas e teorias
financeiras, somos confrontados muitas vezes com a mesma recusa em
compartilhar a verdade com o cidadão comum ou com o mesmo poder e a
mesma vontade de distorcer os factos.

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