o artifício da usura
Giotto era um homem pequeno, e segundo cientistas e
historiadores poderá ter padecido de alguma forma de nanismo.
Provavelmente, foi resultado disso que o seu amigo Dante lhe
perguntou, certo dia, em frente dos seus oito filhos: «Como é que
é possível, mestre Giotto, que faça pinturas tão belas e crianças
tão feias?».
Consta que Giotto respondeu assim: «As pinturas
faço-as de dia e as crianças faço-as... de noite.»
«O sono da razão produz monstros.»
GOYA

pormenor do Juízo
Final de GIOTTO
na capela da Arena (capela Scrovegni), 1303-06.
Enrico degli Scrovegni,
o corrupto de Pádua, exigiu ser pintado oferecendo a miniatura da
sua obra (carregada aos ombros de um clérigo) à Virgem Santíssima.
Como em 'Los Caprichos' de Goya — aludindo à miséria,
à
maldade, à corrupção, ao comportamento pecaminoso de muitos apóstolos da
Igreja, à
ineficácia da justiça e da educação... —, também em alguns símbolos nos frescos de Giotto, cerca de 500 anos antes, já se percebia
a mesma visão pessimista sobre a natureza humana, nos sete vícios
profanos (ao lado das sete virtudes divinas):
loucura, inconstância, ira,
injustiça, idolatria, inveja e desespero. Cada um no
seu tempo, Giotto e Goya romperam com rígidas tradições
artísticas, e através de poderosas metáforas ilustraram a
vida contemporânea, como a de certos cristãos, que —
cansados das inúmeras proibições da religião e pouco confiantes num lugar
fácil no círculo celestial
— se entregavam
sem escrúpulo aos prazeres terrenos. Mas,
se assim foi, porque não consta a usura na famosa lista de vícios do Juízo Final na
capela da Arena?
Reprimida pela Bíblia e
considerada, por Sisto V, como
«um pecado contra Deus e contra os homens», a usura é fortemente condenada por budistas e Maomé, por Platão,
Aristóteles, Séneca, Plutarco, S. Tomás de Aquino... No tempo de Giotto,
Clemente V tinha os usurários como hereges e blasfemos, e Dante Alighieri (A
Divina Comédia, 1314) colocou-os no sétimo
círculo do mapa do Inferno. A igreja recusava-lhes todos os
sacramentos, até o último, da santa unção.
«Com usura homem algum terá
casa de boa pedra (...)
Com usura homem algum terá paraíso
pintado na
parede de sua igreja.»
EZRA
POUND, Canto XLV.
Giotto di Bondone (Colle di Vespignano, 1267-Florença, 1337) revolucionou a pintura
com a introdução da perspectiva, humanizando as figuras
dos santos através da ilusão da tridimensionalidade. Aceitou, em princípios do século XIV, a
encomenda de um tal Enrico degli Scrovegni, um homem poderoso que
herdou do seu pai um negócio lucrativo que consistia no empréstimo
de dinheiro com juros exorbitantes.
Perseguido pela ira popular e mal visto pela
hierarquia católica, Enrico procurou redimir-se mandando construir
uma vistosa capela assimétrica, muito próxima do velho convento de
Pádua onde os frades cultivavam a virtude mais querida da primeira geração
dominicana, a pobreza.
A Giovanni Pisano, autor do imponente púlpito da
Catedral de Pisa, encomendou a sua própria estátua, e a Giotto,
considerado o melhor pintor da época (e para muitos um dos
maiores de sempre, ao lado de da Vinci e Rafael),
impôs que o seu retrato figurasse num dos quadros do
Juízo
Final. Contra as recomendações de Dante, que inspirou a obra, ficou
omitido, no lugar dos vícios, o pecado do homem rico. Pouco antes de morrer,
em 1304, o próprio Bento XI
concedeu indulgências a quem visitasse a nova capela Scrovegni, e há
quem acredite que a sua curtíssima carreira papal foi interrompida
por mãos implacáveis que discordavam de tamanha bondade.
Servindo-se
da cegueira da justiça ou do sono da razão, os poderosos de hoje usam
ainda o secular artifício da usura para satisfazer caprichos
pessoais ou atalhar caminho
em direcção ao céu.
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A Igreja, a usura, a lei e a burla
Durante a Idade Média era autorizada aos tribunais da Inquisição
executarem
os cristãos que praticassem a usura, permitindo-se-lhes ficarem com
os seus bens em troca da salvação das almas. Tida como uma espécie
de servidão ao dinheiro, e por isso condenável segundo os evangelhos
(«ninguém pode servir a dois senhores», Mateus
6:24), a Igreja tinha por usura qualquer empréstimo de dinheiro com
obrigação ao pagamento de juros, mesmo baixos, pois considerava-se
que o usurário ganhava sem esforço sobre um tempo que só a Deus pertence.
Porém, na parábola do mordomo infiel (Lucas 16:1-8), depreende-se que já
nesse tempo as leis — mesmo divinas — existiam para ser vencidas: o
velho hábito burguês levava o usurário a registar bastante mais
do que o valor realmente emprestado, para poder obter lucros
no momento de receber o dinheiro da dívida.

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