Marta e Maria Madalena (ou A conversão de
Madalena, 1597-98).
Todas as mulheres têm dentro de si uma
Madalena. Em Caravaggio acontece o
contrário: todas as
Madalenas têm dentro de si uma mulher... Em A conversão de
Madalena é a prostituta Fillide Melandroni que lhe serve de
modelo.
Nas fogosas representações da
pintura universal, todas as mulheres têm dentro de si uma Madalena: as que choram (as lacrimosas no calvário, de Giotto, Fra Angelico, Jan van Eyck, Masaccio,
Rembrandt, Gauguin...), as reveladoras
(no sepulcro, de Giotto, Fra
Angelico, Jan van Eyck, Van der Weyden, Ticiano,
Rembrandt e Luca Giordano), as que rezam
(as adúlteras, desnudadas e penitentes de Ticiano, Corregio, Isenbrandt, Cigoli, Guercino e Corot), as convertidas e redentoras (que
renunciam às vaidades, de Schedoni, Georges de la Tour e Giordano), as extasiadas
(El Greco), as mães, as esposas e as marias (Van der Weyden, Mantegna e Lucas Cranach), as castelãs (Van der Weyden,
Piero della Francesca e Cranach), as ícones
(de Simone Martini e dos quadros da igreja ortodoxa russa), as iluminadas, que sobem aos céus (de Domenichino
e Lanfranco), e ainda as angelicais (de Perugino e Da Vinci).
Nos quadros bíblicos há essa
primeira Madalena, da costela,
a Eva do pecado original, e uma outra, apaixonada e sensual, Sulamita (a preferida
de Salomão, «porque melhor é o seu amor do que o vinho»,
in Cântico dos Cânticos, 1:2). Talvez a
mesma que, mais tarde, já no Novo Testamento, se transfigura em
Salomé (filha de Herodíade, princesa da Judeia, reclamando a cabeça
de S. João Baptista), ou a que se torna amante de
Jesus Cristo, ao mesmo tempo sagrada e
profana e que ao mesmo tempo provoca os ciúmes dos apóstolos e
orienta os discípulos mais temerários. Pelo meio, as viúvas, as
virgens negras e as Madalenas octogenárias que ilustram laudes e
rábulas medievais. E, por fim, aquela
que se transforma em símbolo do amor (da
soberba da vida, da cobiça dos olhos e da deleitação carnal, na
apropriação do texto de Frei João Claro, Dos começos e raízes dos
pecados, c. 1500), e avatar de Inês de Castro (na documentadíssima interpretação de
Helena Barbas em Madalena - História e Mito, edição Ésquilo,
2008).
Eis as verdadeiras Madalenas de Caravaggio: Fillide Melandroni
e o rol de prostitutas
recolhidas nas ruas de Milão, Roma e Nápoles para figurarem no Retrato de uma
cortesã e Marta com Maria Madalena (1597-98), no
Enterro de Cristo (1602-03), em A morte da Virgem (1605-06),
e ainda em Maria Madalena em êxtase
(1606), entre outras.
Michelangelo Merisi (1571-1610), de Caravaggio, foi pioneiro do Barroco e inspiração para
Rubens, Velázquez, La Tour, Van Dyck, Rembrandt, Vermeer...
ainda assim rejeitado durante séculos
pela sua desvinculação da tradição etérea nas sagradas representações, quer dizer:
uma figura barbuda e sinistra, alto, de tez sombria, de
olhos negros e encovados, demasiado exuberante, enigmático e tão violento
na pintura como no uso da espada.
Consta que, já perto do fim da vida,
entrou numa igreja na Sicília e foi espargido com água-benta. «Para
que me serve?», perguntou Caravaggio. «Para te salvar dos pecados
venais», responderam-lhe. «Então é inútil, porque os meus
pecados são todos mortais» (relatado em Caravaggio: Uma Vida Sagrada e Profana, de Andrew Graham-Dixon,
2010).
Na sua inexcedível aproximação à
fatalidade do "filho de Deus feito homem",
cometeu homicídio (dizem que com artes de espadachim fatiou os
testículos de um tal Ranuccio Tomassoni, seu rival, cruel proxeneta de Roma), e por diversas vezes se redimiu em David e
Golias, emprestando a sua cabeça ao decapitado.
Caravaggio viveu depressa e morreu
exausto, na
miséria, aos 38 anos. Foi ao mesmo tempo protagonista e vítima de
amores e ódios, cobiça, inveja e traições. Retratos do próprio
Cristo nas múltiplas visões das suas fotográficas Madalenas.
AS MADALENAS DE CARAVAGGIO #8 pinturas
_______
"rejeitado durante séculos"
Roberto Longhi, um importante
historiador de arte italiano, promoveu em 1951 uma grande
exposição sobre Caravaggio e os seus seguidores (Caravaggio e dei caravaggeschi,
Palácio Real de Milão), que viria a revelar-se o primeiro contributo
para a reabilitação do pintor depois de 300 anos de obscuridade.
"emprestando a sua cabeça": o Ecce Homo e A
morte da Virgem
Como em David com a cabeça de Golias, era habitual Caravaggio
servir-se do seu próprio corpo como modelo, recorrendo a espelhos.
Em 1605, com Domenico Passignano e Cigoli, recebeu uma encomenda para pintar
um Ecce Homo, mas o seu Cristo era um
auto-retrato tão carregado de mau humor, que foi preterido a favor
de Cigoli.
Em A morte da Virgem, concluído em 1606, Caravaggio usou como modelo uma plebeia,
que alguns
comentadores especulam ser o cadáver de uma meretriz, sua amante, que
fora resgatada do rio Tibre, resultando inchada (uma virgem grávida) e desprovida de
santidade. A pintura foi encomendada por Laerzio Cherubini,
consultor jurídico do Pontifex Maximus Clemente VIII para a igreja das Carmelitas de Santa Maria della Scala,
de Trastevere, nos arredores de Roma, mas suscitou a reprovação das autoridades
eclesiásticas.
O quadro mereceu primeiro o interesse de Rubens, passou depois pelas mãos de Carlos
I da Inglaterra, o rei mártir da Igreja Anglicana, e Luís XIV de França,
até chegar ao Museu de
Louvre. É a maior tela de Caravaggio, onde Maria
Madalena chora diante dos apóstolos.