Especiosa, Miranda do Douro, 28
de Dezembro de 2017.
Ouvir WILLIAM BASINSKI
The Disintegration Loops (ext. 8' 50")
Hoje, de novo entre mariposas e Disintegration Loops,
de novo às voltas com
uma dádiva de amor ou a história de Véra e Nabokov.
«Ela era a torre de controlo da
sanidade possível do escritor, dava-lhe peixe porque fazia bem ao
cérebro e moderava-o no álcool pela razão inversa...» (Marina
Tadeu, Expresso/Revista, 4 de Setembro de 1999). Na verdade,
«quando um cheirava rapé, o outro espirrava», diz Stacy Schiff
em Mrs. Vladimir Nabokov — Portrait of a Marriage.
Enfim, aquela mulher foi "a máscara de
Nabokov...", ou 53 anos de comum sinestesia — uma dedicação
inabalável!
Não há nenhuma história de amor que
seja perfeita, mas é sempre preferível evitar o que se diz de
Bertrand Russell: um génio insuportável ou um caso quase clínico de amor e
destroços.
Num documentário para a BBC (A Procura do Amor, BBC-Blakeway Productions, 1997), a
neta Felicity Ann Russell desabafa: «Todas as famílias que constituiu e todas as relações com mulheres e filhos se desintegraram e, no geral, acabavam com a destruição das suas mentes, e então ele abandonava-as deixando os destroços...»
Ontem, 29 de Dezembro de 2017, a minha
mulher ofereceu-me um chocolate, no café, depois do almoço:
«Sabes que dia é hoje?»
Pois... Foi no dia 29, exactamente há
29 anos atrás (uma quinta-feira, se não estou em erro) que nos
casámos.
____
"um chocolate..."
Sempre vivemos em altura e largura franciscanas, na permanente
necessidade de trocar o supérfluo pelo essencial. Enfim, criei um
mundo à minha medida, só espero alimentar-me o suficiente para poder
caber nele.
Declaração de propriedade: uma casa a meias com o Banco, um Opel
Tigra de 1995 (em processo de restauro), um Ford Cougar
azul de 1999 (restaurado), um Audi TT cabriolet (impecável).
Troco tudo por um carro novo de alta cilindrada, vendo-o e volto a
comprar uma casa a meias com o Banco, um Opel Tigra de 1995
(em processo de restauro), um Ford Cougar azul de 1999
(restaurado), um Audi TT cabriolet também de 1999
(impecável). Ainda, três filhos rapazes e um gato chamado Picasso, mas estes não têm preço.
Como disse aqui [
antes de
morrer
] , «(...) gostava muito de plantar uma laranjeira,
mas falta-me um pedaço de terra.»
"Sabes que dia é hoje?"
As mulheres, pelo menos as mulheres que eu conheço, sempre são mais
severas com as datas. Em todo o caso, eu sempre soube merecer alguma
compreensão (sempre digo aos meus filhos: fiem e porfiem, mas nunca
deixem pontas soltas nem em casa nem lá fora).
"uma quinta-feira..."
Quinta-feira, 29 de Dezembro de 1980. Como se costuma dizer em tais
circunstâncias, estava um frio de rachar em Sever do Vouga, e o meu
amigo Padre Pinho fez uma homilia impiedosa por causa da lindíssima
indumentária verde, rubro e preto da Margarida, com algumas cornucópias pelo
meio.
Ainda hoje, quando olho para aquelas fotografias, solta-se uma lágrima
(também pela presença da minha avó e madrinha Alda, também pela
ausência do meu avô e padrinho Antero falecido aos 63).
Post-Scriptum 1 — Ontem, 29!, à noite, dois polícias bateram-me à porta. Havia na esquadra de Torre de Moncorvo uma queixa contra dois homens e um
Ford Cougar azul... Imaginem a preocupação da minha mulher e dos meus filhos. O que é que andaste tu a fazer com o nosso carro?
Nada de especial. Simplesmente fui fotografar para o planalto mirandês e no regresso parei em casa da
doce Maria Lucinda, 89 anos, Carviçais, para lhe entregar o retrato (emoldurado) que
fiz dias antes...
Os vizinhos, às vezes, são tão proteccionistas que chegam a causar incómodo.
Post-Scriptum 2 — Sobre amor e sinestesia, fotografia e realidade, aconselho ainda vivamente a fotografia
Nu Provençal de Willy Ronis, e a história da vida dividida com a sua mulher Marie-Anne Lansiaux, aqui: