a vida é uma dança...

foto JACKO VASSILEV,
The Dance of Zlatyo Zlatev, 1990
«A cancela está aberta.
Não pára de bater.
Está assim
há anos. Bate, bate...
Este vento inferniza até aos ossos
e não há
maneira dela se calar.
Ouviste?
Dantes ela não batia.
Arranjava-se!
Tenho que ir lá acima. Buscar uns pregos...
Não há
maneira de te levantares daí.
O vento tolhe-nos. Dia e noite, noite
e dia.
Nem sei se posso. Olha que não vou lá acima
há muito tempo.
Às vezes também chegam de lá
uns barulhos estranhos,
parece que há fantasmas cá em casa...
A cancela está a bater.
Acho que ainda há qualquer
coisa no sótão.
Vou lá ver.
Levantas-te daí?»
Antero de Alda
Poema do amor crepuscular
(inédito).
«Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar.»
NIETZSCHE, fala de Zaratustra
Se para alguns a velhice representa uma aproximação
com Deus, a que antecede uma quase
infinita sucessão de orações (reza-se pela absolvição dos erros
cometidos, os próprios e os de quem se ama), para muitos outros já não
é possível — como presume Steiner — restaurar o laço quebrado entre
a palavra e o mundo, ou porque se tornou inviável conjugar o amor
com a invenção do tempo futuro (o que tornaria a aventura mortal um
pouco mais válida), ou simplesmente porque Deus se silenciou num
momento decisivo das suas vidas e assim se impôs a sua ausência até
ao fim. O suicida, porém, acredita — não raramente — que para a sua
precoce vontade de morrer Deus participou de modo decisivo, o que
o leva ao mais paradoxal dos ateísmos: a presença divina torna-se tão
inevitável (para poder ser negada) quanto profundamente reprovável.
Quer Deus exista ou não, depois de Zaratustra a maior
ausência de fé está na inumanidade total que reside na desconfiança
do homem em si mesmo. Como, às vezes, no tédio mesquinho das nossas casas.
Ou como em Auschwitz: para uns uma mentira, para outros o verdadeiro Inferno onde Deus
inexplicavelmente se extinguiu.
O homem destrói-se até onde pode e só não é capaz de
destruir (porque não domina) a sua própria morte. Porque, deduzindo
outra vez de Georges Steiner, abrir portas e não saber
fechá-las é o seu trágico destino.
Enfim, o mais temível ateu é aquele que não acredita
em si mesmo, que se silencia perante a aberração que
representa o seu próprio silêncio, que já não suporta o seu próprio peso para uma última dança.
É preciso beber..., disse Celan. É
preciso dançar para estar no mundo.

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