Barthes, fotografia e catástrofe
«A tragédia não é a imitação de homens, mas de uma acção de uma vida.»
ARISTÓTELES
Sabe-se que a existência humana é por natureza
trágica, e na sua esmagadora maioria as imagens dos grandes
fotojornalistas revelam essa tragédia em movimento (a guerra, o caos...) e
poucas vezes a intimidade da
morte. Não porque a morte não seja, em si, uma tragédia, mas será a
morte particularmente fotogénica? Afinal, como se
deduz da Poética de Aristóteles, a dimensão da tragédia (um
«punctum» da fotografia) não reside tanto numa simples
representação do homem — o seu retrato estático, o seu tempo parado —, mas na expressão
da sua perversidade em acção.
Vejamos o que diz Roland Barthes.
Felicidade Coelho
(à direita) numa fotografia dos anos (19)80.
foto
GÉRARD FOUREL
Reencontro com Felicidade Coelho, Vilarinho Seco,
Março de 2007.
foto ANTERO
DE ALDA
«Este novo punctum, que já não é forma, mas intensidade, é o tempo, é a ênfase dolorosa do noema ('isto foi...'), a sua representação pura.»
ROLAND
BARTHES
A reflexão barthesiana do tempo fotográfico difere do conceito de
acção do fotojornalismo, e talvez até do próprio conceito de «momento decisivo» de Bresson.
Isto, porque, como diz Ruth Iana Ferreira (Fotografia/Tempo: Imagem mental e emoção), se
«atribuímos ao objecto fotografado uma vida exterior ao que realmente nos é apresentado, o desejo de ver mais além do que o visível...», também nos apercebemos que há na fotografia
«dois tipos de morte: a morte instantânea – o momento do disparo e respectiva paragem no tempo – e a morte previsível – esse noema que é 'isto será...' e 'isto foi...'».
Mais ou menos criativos, os retratos serão sempre testemunhos do encontro dos vários tempos (o tempo congelado e o tempo previsível, o tempo criativo e o tempo antropológico...) que a fotografia representa.
Felicidade Coelho foi fotografada nos anos (19)80 pelo fotógrafo francês Gérard Fourel. Em 2007, reencontrei-a quando ela própria já não tinha a noção do seu tempo de vida: pensa-se que terá agora 76 anos.
Doente de Alzheimer, partiu para a América, para casa
de uma filha, em Março de 2009. Partiu para morrer.
«(...) Ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isto será e isto foi. Observo, horrorizado, um futuro anterior em que a morte é a aposta. Dando-me o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia diz-me a morte no futuro.
O que me fere é a descoberta desta equivalência. Diante da foto da minha mãe criança, digo para mim mesmo: ela vai morrer.
Estremeço, como o psicótico de Winnicott, perante uma catástrofe que já aconteceu. Quer o sujeito tenha ou não morrido, toda a fotografia é esta catástrofe.»
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Cits. ROLAND BARTHES, 'O Tempo como Punctum',
A Câmara Clara, 1989: Edições 70, Arte & Comunicação, Lisboa.

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