femicídios
e
o Homem seguinte
Jornal de Notícias em papel, hoje, 17 de Janeiro
de 2017:
«Um homem matou a mulher e tentou suicidar-se de seguida, esta terça-feira de manhã, na freguesia de Silva Escura, em Sever do Vouga, distrito de Aveiro.»
(online)
«Um homem desferiu vários golpes com uma faca à
mulher, esta terça-feira à tarde, junto a um posto de abastecimento
de gasolina, em Bragança, na saída para Vinhais.» (online)

YVONNE RAINER Trio Film,
1968 (unauthorized
frames).
10 frames não autorizados, Museu
de Serralves, 2017.
Desde 2004, foram
assassinadas 472 mulheres em contexto de violência doméstica em Portugal. A informação é
do Jornal de Notícias de 23 de Novembro de 2017, e retomo-a
quando, nos Estados Unidos, as mulheres que elegeram o predador
Trump (a trampa da América!) decidiram lembrar-se, todas ao mesmo
tempo, que há alguns anos atrás foram sexualmente assediadas, esquecendo, em
muitos casos, que afinal se prostituíram para poderem aparecer nas
passadeiras vermelhas de Hollywood.
Neste nosso país de água e de sal não há
passadeiras vermelhas para as mulheres, nem para os pobres nem para os velhos nem
para os deficientes nem para os homossexuais..., e estou quase certo de
poder afirmar com rigor que só uma ínfima percentagem destas 472 mulheres
«assassinadas pelos maridos ou ex-companheiros» terá passado
alguma vez por algum motel de luzidios espelhos com poemas de
António Ramos Rosa.
Diz ainda o JN: «83% dos femicídios foram consumados no interior
da residência do casal, do ex-casal ou ainda das vítimas.»
Diz Carpinejar uma frase que, como
em qualquer interessante provérbio, pode ser interpretada conforme melhor
interessar: «Vejo homens que somente encontram força para seduzir uma mulher, não para se distanciar dela.»
Assim sendo, escrevo ao cuidado dos homens violentos e agressivos com as "suas" mulheres,
para denunciar e lembrar a todos que há homens que estão atentos à violência
e agressividade contra as mulheres, para dizer às mulheres que devem
sempre arriscar morrer outra vez e ressuscitar no homem seguinte.
Porque é preciso acreditar no Homem seguinte, essa figura
antropológica que há-de vir.
____
"femicídios"
A palavra não vem na maioria dos dicionários, mas Ana Carcedo conhece-a pelo menos deste 2000. A sua palavra-chave é
«combater a impunidade», e o que diz em No olvidamos ni aceptamos... (San Jose: CEFEMINA, 2010) é isto:
«O maior fator de risco é ser mulher, e elas são mortas por viverem em sociedades patriarcais», op. cit.
Vem a propósito lembrar que, ainda segundo o Jornal de Notícias (que leio todos os dias como se fosse um Pai-Nosso e uma Avé-Maria),
«Os homens ganham, em Portugal, mais 17,8% do que as mulheres, acima da disparidade salarial média na União Europeia (UE 16,3%), segundo dados de 2015 divulgados esta segunda-feira pelo Eurostat.
(...) A disparidade salarial é definida como a diferença entre os vencimentos anuais entre homens e mulheres, mas quando se tem em conta as três desvantagens que estas têm que enfrentar - menor salário por hora, menos horas de trabalho em empregos pagos e taxas de emprego mais baixas - a disparidade de género chegava, em 2014, aos 26,1% em Portugal (UE 39,6%).»
JN, 21 de Novembro de 2017.
Não será isto, também, uma forma de
femicídio?
"YVONNE RAINER Trio Film (...) unauthorized frames"
Quando vi estas imagens pela primeira vez, numa sala do Museu de
Serralves, fiquei com a forte convicção de que a autora queria
denunciar o problema da violência doméstica, dos homens sobre as
mulheres ou das mulheres sobre os homens, de homens sobre homens ou de mulheres
sobre mulheres.
Yvonne Rainer não autorizou a sua reprodução neste contexto. Sendo
ela casada com outra mulher e (tal como a sedutora Barbara Hammer)
pioneira na cultura do cinema lésbico e gay, Rainer respondeu-me: «The clip that you chose, of Steve jumping up and down with his penis flapping, is, admittedly, vulgar and voyeuristic, but also, if isolated from the rest of the film for any reason, its meaning can be too easily distorted and exploited. I cannot risk that happening, even for a good cause.»
Reinterpretar o filme de Yvonne Rainer pareceu-me tão natural como
roubar-lhe 10 frames por uma boa causa.

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