Pode dizer-se que um
homem moderno revela-se quando consegue interiorizar os
sinais da modernidade. Mas ele será verdadeiramente
revolucionário (um génio, afinal) quando não só consegue interiorizar mas também
consegue interpretar a
mudança dentro do seu próprio mundo. Ainda que isso possa ser,
por vezes, profundamente doloroso.
Freud foi, para muitos,
um homem moderno. Mas só aqueles que conhecem o drama de
ter gerido no seio da sua própria vida a estranha masculinidade da
filha Anna —
o que não era fácil há 100 anos
atrás —, sabem ao certo a dimensão da sua genialidade. No fundo,
confirmando uma máxima de Jacques Rousseau, o
mundo de Freud era bom e ele sabia-o: só a sociedade o poderia
corromper...
Ninguém pode acusar o
pai da Psicanálise de incoerência: ao atacar os
constrangimentos e a repressão do inconsciente, contribuiu decisivamente para a
mudança dos costumes e o degelo de muitos preconceitos. Dizem os caricaturistas
com natural exagero que não se pode desligar os ensinamentos de Freud da promiscuidade sexual moderna.
É, de facto, de sexo
— e da sua
negação —, que falamos se falamos de Anna.
Freud foi
seu psicanalista. Porquê?
Descobrir isso é uma suprema catarse: tentar entrar na sua intimidade,
ameaçar contra todas as suas
teses, provar (ou negar) a sua genialidade. Será possível?

foto TIM GIDAL,
Anna Freud,
1920.
Em certos aspectos, a filha de Freud faz lembrar Frida Khalo. Foi «moderna e homoafectiva», dizem. Há quem arrisque
mesmo a afirmar que se tornou amante de Dorothy Burlingham, a americana
que foi co-autora de algumas das suas obras
e teorias. Mas, se foi tão compreendida pelo pai, à luz da teoria do
«continente obscuro» (a natureza da feminilidade foi, para Freud, um
enigma irresolúvel), não o terá sido também porque era mais
«masculina» do que «feminina»?
Anna Freud (1895-1982) foi a última de seis
filhos de Sigmund e Martha. Enfim, o pai terá desejado ter um
filho varão, a irmã Sophie — aparentemente mais bonita — parecia
monopolizar as atenções da família, e nas inquietações da
adolescência não terá escapado ao objecto do seu estudo:
Complexo de Édipo e instinto de morte (sabe-se que Anna rejeitava a
mãe e passou por graves depressões).
Com o passar dos anos, é o pai que se converte: o pai
é o totem, claro, mas ele próprio abdicou disso em relação à
filha. Em
1899, numa carta ao seu amigo Wilhelm Fliess, Sigmund
confessava: «Anna has become downright beautiful through naughtiness...»
(tornou-se bonita com a sua maldade). Premonição?
Anna foi discípula do pai.
Se o temeu (como Kafka, Carta ao Pai, 1919: «diante de ti
perdi toda a confiança em mim»), ninguém sabe. Idolatrou-o e
acompanhou-o até ao fim.
Na acepção reichiana, terá sido o pai que lhe
facilitou a
escolha entre temperamento e carácter, entre neurose e psicose
na sua própria acepção. Em conclusão, uma ausência
paterna poderia ter-lhe sido fatal...
Participou em importantes acções humanitárias na Europa
pós-hitleriana e, mesmo depois de — por modéstia — passar a
vida a negá-lo, desenvolveu sem dúvida um trabalho
pioneiro sobre a psicanálise infantil.
Sigmund escreveu um dia: «If you want to be a real psychoanalyst you have to have a great love of the truth, scientific truth as well as personal truth, and you have to place this appreciation of truth higher than any discomfort at meeting unpleasant facts, whether they belong to the world outside or to your own inner person.» O que quer dizer que
ele achava que um verdadeiro psicanalista
deve ser íntegro e responsável do ponto de vista científico e também
na sua vida pessoal, e isso ajudá-lo-á na compreensão dos factos
mais desagradáveis, tanto na vida dos outros como na sua própria
vida.
Em 1988, nos EUA, Peter Gay, professor de História da Yale University,
Connecticut, publicou uma biografia de Freud com um título
magnífico: A Life for Our Time (Freud: Uma Vida para o
Nosso Tempo, na edição da 'Companhia das Letras', Brasil, 1989).
Em resumo, de fiável pouco se sabe sobre a vida íntima de Anna
Freud para além das ameaças sensacionalistas de alguns dos seus críticos e dos testemunhos simbólicos do seu
próprio pai.
Como disse Nietzsche, um homem de génio será insuportável se não
possuir duas outras qualidades: gratidão e asseio. Freud teve-as em
relação à filha. Afinal, foram ambos modernos e geniais. Tanto,
que souberam gerir as feridas com essa rara inteligência de
transformar a angústia, a dor e a
perda em... símbolos. Exactamente! O que servia para os outros era válido para eles
próprios.
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Num importante estudo publicado pela revista «Psyché» (Universidade São Marcos,
S. Paulo, Brasil, 2006), com o título Electra versus Édipo, a
psicóloga holandesa Hendrika Halberstadt propõe uma análise
simbólica da relação entre Freud e a filha, a partir do mito
de Electra, e lança algumas luzes sobre o drama da família. «A bissexualidade pode levar à assexualidade, como demonstra Electra. Sem ser homem ou mulher, consola-se com sua superioridade moral em relação a sua sensata irmã, Chrysothemis, a qual representa a mulher sadia. O ódio que Electra espera da mãe é parcialmente uma projecção da animosidade da criança frustrada.
(...)Anna, a filha mais nova e não desejada da família Freud, sentiu-se negligenciada por sua mãe e profundamente decepcionada com ela. Em razão disso, ligou-se ao pai, a quem idealizava, como Electra, sem chegar a uma escolha heterossexual.»

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