
foto CRISTINA
GARCÍA RODERO A promessa de uma mãe, La Franqueira, Espanha, 1981.
O ritual de
Nosa Señora da Franqueira
«Los padres de Jesús se presentan en el templo con lo que han recibido de Dios: con su hijo.
Ese hijo es la palabra única que su madre dice, es el don que, por ella, Dios ha hecho a los pobres. Ese hijo, esa palabra, la madre nos la dice a todos, pues para todos la ha engendrado, para todos la ha dado a luz, para todos la ha amamantado, para todos la ha querido.»
Frei SANTIAGO AGRELO, Arcebispo de Tanger.
Guia del
peregrino, Ano Xubilar da Franqueira, 2012.
«Ir no caixão em cumprimento de promessa é porventura
sórdido e tenebroso. Mas os caminhos da fé e do desespero quando se cruzam
originam um palco de gigantescas façanhas humanas.»
JOSÉ
CARLOS
CARVALHEIRAS
Pelo seu carácter macabro, a tradição
da procissão dos caixões
(procissão dos mortos-vivos ou cortejo dos amortalhados) foi
abandonada na conhecida romaria da Senhora da Aparecida, em Lousada,
no ano de 1994. Citando E. O. James (Le culte de la
Déesse-Mère dans l'histoire des religions,
1960), o antropólogo Moisés Espírito Santo refere que este culto permitia
aos fiéis alcançarem a fé perdida no nascimento, pressupondo graves
maleitas congénitas ou estímulos demoníacos na primeira infância,
ou ainda o afastamento da figura materna, logo substituída pelas diversas
figuras de Nossa Senhora, como a Nossa Senhora da Aparecida, numa
época em que a medicina não respondia adequadamente às ameaças incontornáveis do
parto. Assim, à volta da imagem da mãe confluem «todas as modalidades da força mágico-religiosa,
fecundidade, fertilidade, crescimento, morte e renascimento»
(Moisés Espírito Santo, A religião popular
portuguesa, 1990). Os amortalhados eram homens e mulheres, jovens e velhos, mas sobretudo
crianças, que cumpriam promessas, seguiam em desfile atrás de grupos de
bombos ou guardas a cavalo, ao som de marchas fúnebres intervaladas
por melodias mais alegres que simbolizavam a vitória da vida sobre a
morte.
Em tempos, o ritual cumpriu-se também em muitas
localidades de Espanha: Póboa do Caramiñal, Santa Marta de Ribarteme,
Nosa Señora do Viso e Nosa Señora de Amil. E também em
Santo Cristo de la Agonia de Xende e
Nosa Señora da Franqueira, segundo os magníficos registos
fotográficos de Cristina García Rodero. Para o antropólogo galego Xosé Ramón
Mariño Ferro, correspondia a uma certa forma de imaginação dos fiéis
para negar a realidade da morte e, «neste sentido, o hábito de
realizar procissões de caixões com toda a naturalidade deve tomar-se
como uma maneira de ser bem sucedido no mundo,
definitivamente, um sinal de sabedoria» (Mariño Ferro, Las
romerías, peregrinaciones y sus símbolos, 1987).
Para José Carlos Carvalheiras (A procissão dos caixões na Senhora da Aparecida,
revista OPPIDUM, número 1, 2006), o dilema que determinou a
extinção desta tradição, baseado numa guerra entre o profano e o
sagrado (ou entre o culto popular e a religião oficial), teve também a sua
batalha filosófica,
opondo Émile Durkheim («o que eu peço ao livre-pensador
é que se coloque face à religião no estado de espírito do crente...», em A
ciência social e a acção, ed. Difel, 1975) a Georg Simmel
(«reagir racionalmente,
aprofundando a sua consciência e adoptando uma
reserva mental, uma indiferença implacável...», em A metrópole e a vida do espírito,
1903).
Hoje [ 12 de Setembro de 2013 ], a Euronews,
citando um relatório da Oxfam Internacional, refere que «as políticas de austeridade podem conduzir mais 25 milhões de cidadãos da União Europeia para a pobreza até 2025.»
O documento desta organização que luta
contra a pobreza, com o título A cautionary tale: The true cost of austerity and inequality in Europe,
é prefaciado por Joseph Stiglitz, Nobel da Economia em 2001 e antigo
economista-chefe do Banco Mundial, que diz: «A austeridade (...) está a contribuir para a desigualdade que vai tornar as fraquezas económicas mais duradouras e contribuir, desnecessariamente, para o sofrimento dos desempregados e dos pobres por muitos anos.»
No cortejo dos amortalhados de Nossa
Senhora da Aparecida seguiam também, nas décadas de 1960 e 1970,
soldados que sobreviveram às guerras coloniais de Angola, Guiné e
Moçambique ou as suas mães, tal como no Vietname, na Bósnia, no
Iraque, nos territórios das guerras islâmicas e agora nas
praças de Nova Iorque, Paris, Grécia, Portugal, Brasil (o grito dos
indignados, o grito dos excluídos ou o grito das mães inúteis).
O que prevalece e confunde nesta pós-modernidade
é esta
ideia de que
morrer ou ser morto é a mesma coisa, sugere o mesmo mecanismo formal da
«hospitalização» (Frei Geraldo J. A. Coelho Dias,
O sonho da escada de Jacob, 2001),
e exige o mesmo processo de intermediários, que transformam a tragédia
num negócio destituído de pureza e de solidariedade: «o acto de velar os mortos na
urbe, nas sociedades individualistas da solidariedade
orgânica, é circunscrito, escondido, oficial, orgânico,
instituído» (José Carlos Carvalheiras, op. cit., p. 111).
Assim, não se estranha que, para
alguns, sofrer é uma banalidade.
_______
«Man is a wolf to man.»
HOBBES

anterior
|
início
| seguinte