Parece haver nas fotografias da Espanha bíblica de Cristina García Rodero uma guerra latente entre
o genuíno religioso popular e o culto da Igreja oficial, entre aquilo
que María del Pilar Roca define como «a fidelidade à
tradição» e «as tendências filosóficas de cunho
racional», ou em última análise entre o crente «livre-pensador» da
interioridade espanhola (segundo Durkheim) e a «reserva mental»
do indivíduo da metrópole (Georg Simmel), separados por um processo de
aculturação (ou "normalização") nem sempre pacífico, aliás, muitas vezes doloroso e com
a
sua dose de barbaridade, como lembra Walter Benjamin.
Recentemente, Cristina Rodero fotografou os príncipes Felipe e Letizia no luxo do
palácio real...
foto CRISTINA
GARCÍA RODERO
La confesión, Nuestra
Señora de los Milagros de Saavedra, 1980.
«Con toda esa materia derrumbada
y el repetido rumor del reloj de la muerte
he construido este extraño reino:
espejos rotos donde el sol se refleja.»
JUAN
LUIS
PANERO
Cristina García Rodero (Puertollano,
1949) fez em Agosto
de 2012 uma série de fotografias com a família de Felipe de Bourbon, Senhor de Balaguer,
Conde de Cervera e Duque de Montblanc, no palácio de La Zarzuela, a
residência oficial dos reis de Espanha, nos arredores de Madrid. É
mais reconfortante supor que a fotógrafa procurou conciliar «as práticas exegéticas rabínicas do medievo»
espanhol (nas palavras da antropóloga María del Pilar Roca) com a
modernidade, do que deixar-se vencer pela voracidade desta mesma
modernidade ou simplesmente satisfazer a vaidade
burguesa dos príncipes das
Astúrias, por terem sido fotografados pela única espanhola que até
hoje conseguiu chegar aos quadros da mítica agência fotográfica Magnum. Seja como for, e como se deduz das entranhas dos versos de Juan Luis Panero (falecido neste 16 de Setembro de 2013), não é possível
sarar todas as feridas...
De resto, em Espanha como em Portugal,
há ainda uma dura guerra por travar,
entre
«pensadores judíos de la Modernidad» (como o filósofo Reyes
Mate) e cristãos bárbaros germanos (segundo o historiador John Hirst) que
parecem sustentar hoje a supremacia da Europa no mundo.
El Santo Entierro de Bercianos de
Aliste, el auto de fe de Camuñas de Toledo, la rapa das bestas de Sabucedo, la caballada
de Atienza, los empalaos de Valverde de la Vera, la procesión de
"La Carrera"
de Villarrín de Campos, los penitentes de
Cuenca, los colinegros de Baena e los coloraos de
Murcia, la pasión de Riogordo, los angelitos de Morella, los danzantes
de Belinchón, el peliqueiro de Laza, las promesas de La Franqueira,
los peregrinos de Usera,
las mayordomas de El Cerro de Andévalo, los toros de San Juan de Cória, los
robaculeros
de Estella, las virgenes ofrecidas de San Martín del
Pedroso, los diablos de San Blas de
Almonacid del Marquesado, los amortajados galegos de Amil, etc. etc. etc. «A importância dos
rituais festivos é um aspecto notável da vida espanhola, com uma
força maior, em número e vitalidade, do que em qualquer outro país mediterrânico. Este fenómeno envolve manifestações (...) de antigas origens pré-cristãs»,
diz Marie-Loup Sougez em O pulso da história e a reflexão do quotidiano
(v. Fotografia
Documental Contemporânea em Espanha, Barcelona, 1991).
Cristina García Rodero percorreu o
mundo e andou depressa
no registo fotográfico desse «extraño reino» de Panero («la
mirada profunda»
segundo Rafael Sanz Lobato), a
magnífica España Oculta, que serviu de título ao seu livro de 1989 e
que venceu
os prémios W. Eugene Smith Foundation e Book of the Year
de Arles. Esta, sim, é uma guerra que já
quase se extinguiu.
A ESPANHA OCULTA DE CRISTINA GARCÍA RODERO #29 fotografias
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"a fidelidade à tradição"
María del Pilar Roca é doutorada pela
Universidade Autónoma de Madrid e professora de Literatura Espanhola
na Universidade Federal de Paraíba, Brasil. Tem publicado diversos
textos de investigação sobre cultura e filologia hispânicas, como A função das línguas vernáculas na construção do ocidente cristão
(2006), O judaico na formação do estado de direito (2008)
e Língua e tradição: judeus-conversos espanhóis leitores de São Paulo
(2011). Em Uso e comunidade: a continuidade da tradição em Juan de Valdés e Martin Buber, estuda a tradição oculta do Ocidente
através do vínculo entre língua e comunidade, referindo: «A Espanha do período medieval e
renascentista manteve uma tendência próxima à compreensão comunitária das tradições graças
à preservação das práticas exegéticas rabínicas do medievo que influenciaram no conceito de
língua em uso. De igual maneira, na Europa central de inícios do século 20 se observa uma volta
à exegese bíblica como necessário resgate da chamada tradição oculta do Ocidente. O estudo
comparado de duas figuras, uma hispânica e outra austríaca, Juan de Valdés (1504-1541) e
Martin Buber (1878-1965), ilustra o vínculo entre língua e comunidade. Assim como Valdés
considera língua como uma experiência de uso responsável pela elaboração dos sentidos, Buber
afirma que o referencial do significado não é a palavra, porém a comunidade.»
(Revista Digital de Estudos Judaicos, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011).
"pensadores judíos de la Modernidad"
O filósofo espanhol Reyes Mate (Manuel Reyes-mate Rupérez,
Valladolid, 1942) desenvolveu uma investigação abrangente sobre
história e religião, baseada na exaltação da memória dos vencidos a
partir do exemplo da perseguição aos judeus na Alemanha nazi e do
testemunho de Walter Benjamin sobre civilização e barbárie: «nunca houve um monumento da cultura
[ ou de civilização ] que não fosse também um monumento da barbárie.»
"a supremacia da Europa"
John Hirst, australiano, professor da
Universidade La Trobe de Melbourne, publicou em 2009 The Shortest History of Europe
(Breve História da Europa, na edição portuguesa da editora D.
Quixote, 2013), onde defende uma polémica teoria eurocêntrica
fundada na herança da Grécia Antiga, na religião cristã e sua
ascendência sobre o judaísmo, e ainda na barbárie germânica, que
predominou depois da conquista do Império Romano e que parece
ressurgir nos nossos dias.
"o pulso da história"
Marie-Loup Sougez, filha do fotógrafo Emmannuel Sougez,
é uma investigadora francesa radicada em Espanha. Com
Bernardo Riego, Lee Fontanella e Publio López Mondéjar, entre outros, contribuiu
decisivamente para o estudo da fotografia espanhola na sua vertente
sociológica, principalmente a partir da publicação do livro Historia de la fotografía (Madrid, 1981).
"la mirada profunda"
O fotógrafo Rafael Sanz Lobato (Sevilha,
1932) é considerado o mestre de Cristina García Rodero. Ignorado
durante vários anos pelo regime de Franco e seus sucedâneos, foi
galardoado em 2011 com o Prémio
Nacional de Fotografia, «por su pericia para mostrar la transformación del mundo rural»
(acta do júri, Ministério da Cultura de Espanha), apresentando-se
hoje, ao lado de Cristina Rodero, como um pioneiro do realismo
fotográfico de cariz antropológico capaz de interpretar o conflito
entre tradição e modernidade.
"uma guerra que já quase se
extinguiu"
É certo que muitas fotografias de Cristina
García Rodero não seriam possíveis nos dias de hoje, mas releva-se
aqui o
seu estilo pessoal sem esquecer o que diz a antiga directora do
Museu de Fotografia Contemporânea de Chicago, Denise Miller-Clark: «o
estilo documental de hoje dá-nos a oportunidade de captar as contradições que ocorrem
num país que está num momento de transição» (Fotografia
Documental Contemporânea em Espanha, Barcelona, 1991). Da geração de
Cristina Rodero, o fotógrafo Cristóbal Hara (Madrid, 1946) é um exemplo
paradigmático da introdução da cor, a partir de 1985, no ritual
espanhol que ainda
persiste.