Recordo um dos slogans do Maio de 68, em Paris:
«Sartre, seja breve.» E, apesar disso, o que diz Jacques Rancière, o
outro filósofo francês, nascido em Argel e autor do livro Ódio à democracia (2005), ao jornal
espanhol Público em Janeiro de 2012: «O grande defeito dos cidadãos
continua a ser, hoje, o mesmo de sempre: deixar-se despojar do seu poder.»
Este despojamento, que a dada altura se desenvolveu a
partir duma
fé incondicional na Democracia, acabou por relaxar a
própria Democracia, em benefício dos mercados, que
deixaram de se interessar pelo bem estar das pessoas e tornaram-se
unicamente dependentes do lucro. Quer dizer, o dinheiro transformou-se numa droga.
Hoje, mais do que
nunca, estudamos os prejuízos causados por esta metamorfose
diabólica da Democracia para a Plutocracia e formas concretas de colocar os cidadãos em
acção para retomarem o poder. É uma tarefa difícil, que
pode levar muitos anos, muitos mais do que aqueles que foram
necessários para esvaziar os Estados das suas responsabilidades.
Eles vestem
as nossas
roupas
ANTERO DE ALDAVideografias
do Lixo pós-moderno, Agosto de 2013.
1. negócios da china
«Tudo se discute neste mundo, menos uma coisa,
que não se discute: não se discute a Democracia. A Democracia está
aí, como se fosse uma espécie de santa de altar, de quem já não se
esperam milagres...»
JOSÉ
SARAMAGO
O espanhol Amancio Ortega Gaona, dono da Inditex,
o grupo da
Zara, da Massimo Dutti, da Bershka, da Pull and Bear
e da Stradivarius, entre outras empresas, e o sueco Ingwar Kamprad, dono da
Ikea, são os dois
homens mais ricos da Europa, segundo a revista suíça Bilan,
acumulando fortunas individuais de cerca de 40 mil milhões de euros cada.
Como é que é possível que um só homem possa ter tanto
dinheiro?
No Bangladesh, onde se instalaram as empresas de
Amancio Ortega e tantas outras à procura de matéria-prima e
mão-de-obra baratas, terminou agora a peregrinação
às margens do rio Turag, no culminar de trinta dias dedicados ao jejum,
às orações e às esmolas. No feriado do Eid al-Fitr, que assinala o fim
do Ramadão,
um
movimento de cerca de dois milhões de fiéis encheu os
principais transportes públicos das cidades de Dacca e Tongi. Se considerarmos
que no Bangladesh trabalham cerca de quatro milhões de pessoas nas
empresas têxteis, compreende-se que este ritual não é muito
diferente do movimento de todos os dias, logo pela manhã cedo e à noite, quando os
funcionários chegam ou abandonam os seus locais de trabalho, onde
recebem salários que rondam os 30 euros por mês.
Estas pessoas chegam a trabalhar 70 horas por semana,
incluindo sábados e domingos, sem direito a protecção social, reforma, subsídio de
férias ou de Natal. Aos
domingos trabalham até às 16 horas, mas como sempre só saem
das fábricas uma hora depois. Entre elas, existem milhares de
crianças, que muitas vezes são obrigadas a descansar, entre os
turnos, nos seus miseráveis locais de trabalho, sem condições
sanitárias e de higiene básicas e sujeitas a assédio e outras
provocações sexuais. Na maior parte dos
casos, são subcontratados de pequenas empresas que trabalham para as
grandes multinacionais da Europa como a Inditex.
No Bangladesh, na Índia e no Brasil o
preço de produção de umas calças fabricadas com a etiqueta Zara Basics
ou produtos similares
não chega a atingir os 2 euros, sendo depois vendidas nos
grandes centros comerciais da Europa a 39,90 cada peça. Ainda
assim, este sistema de dependência comercial está de tal maneira montado
à escala
global, que os governos destes países apelam com regularidade às autoridades da União Europeia para não aplicarem medidas
punitivas pela ausência de condições dignas de trabalho. De resto, depois do
acidente de 24 de Abril numa fábrica clandestina de Dacca, Mahmood Ahmed, um especialista financeiro ao serviço do Banco Islâmico do
Bangladesh e autor do livro O cheiro do
dinheiro (The smell of money, 2009), fez a seguinte
declaração: «Se a UE ou outros compradores impuserem condições de comércio rígidas sobre
o Bangladesh, a economia do país será prejudicada e milhões de trabalhadores perderão
os seus empregos.»
Afinal, como é que as fábricas do Bangladesh,
do
Brasil, da China e da Índia poderão modernizar-se e pagar salários dignos aos seus
trabalhadores, se as empresas europeias não lhes pagam o preço justo pelo
produto do seu trabalho? Afinal, não são estas mesmas empresas, e
os bancos como o Goldman Sachs, o Citibank e o Deutsche Bank,
que exigem que os salários baixem na própria América e na Europa para poderem
ter lucros anuais cada vez maiores, de dezenas de milhares de milhões de euros?
2.
o caso americano
e a herança da Europa
Na América, pouco anos depois da crise da
Bolsa de 1929, os mercados voltaram a retomar o domínio das
políticas governamentais. O Memorando Powell (1971) impôs vigilância
aos média e aos intelectuais, defendendo que «os homens de
negócios devem usar o seu músculo financeiro para moldar as
políticas do país», e o presidente Reagan
(1981-89) aniquilou os movimentos sindicais
e desregulamentou
definitivamente a banca e
o comércio. Seguiu-se um conjunto de
medidas que visaram aliviar os impostos às empresas e aumentá-los
aos trabalhadores.
Ross Perot, candidato às presidenciais de 1993,
fez na televisão, no debate de 15 de Outubro de 1992 com George Bush e Bill Clinton
(Richmond, Virginia), um importante aviso que os americanos ignoraram
completamente:
«Se paga 12, 13, 14 dólares por hora a operários das fábricas e pode
mudar a sua fábrica para o sul da fronteira [México], pagar 1
dólar por hora, não pagar serviços de Saúde, (...) não haver
controlo ambiental, controlo da poluição, nem reforma, só tem de se
preocupar em ganhar dinheiro... Haverá um grande ruído de sucção em
direção ao sul.»
Sustentando a teoria do pacto entre
Republicanos e Democratas (o equivalente ao bipartidarismo que
existe na Europa entre sociais democratas e socialistas), em 2000 o
presidente Clinton, com o apoio do Secretário do Tesouro,
Robert Robin, e do presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, sob
proposta do congressista
Phil Gramm, revogaram a antiga lei Glass-Steagall e fizeram
aprovar o chamado The Commodity Futures Modernization Act, que
permitiu a
liberalização de produtos financeiros obscuros (os derivados tóxicos
dos bancos), dando luz verde para que Wall Street se transformasse
num
casino e escancarando as portas
para a crise de 2008.
Segundo dados revelados por Frances Causey
e Donald Goldmacher no documentário Heist: Who Stole the American Dream?
(Os ladrões do sonho americano,
2011), por causa desta crise, mais de 10 milhões de pessoas já
perderam as suas casas e outros tantos trabalhadores perderam
os seus empregos, e cerca de 50 milhões passaram a viver abaixo do limiar da
pobreza. A dramática realidade destes números está a agravar-se em
cada dia que passa, porque os ricos deixaram de se interessar
apenas pela exploração das classes mais pobres e passaram a atacar
também a classe média.
Há mais de 40 anos que os americanos,
incluindo alguns reputados economistas, estão a reclamar uma mudança
radical dos paradigmas económicos, mas a verdade é que os governos e
as grandes instituições financeiras nem querem ouvir falar disso. O
próximo passo é responsabilizar as funções sociais do Estado pelo
descalabro económico, privatizar a Segurança Social e o sistema
nacional de Saúde e aumentar a idade da reforma para os 70 anos.
O
vice-ministro das Relações Exteriores do México, Jorge Castañeda, criticou em
tempos a NAFTA (Jorge Castañeda e Carlos Heredia, Another NAFTA:
What a Good Agreement Should Offer,
World Policy Journal, 1992), acusando-a de favorecer os interesses dos ricos e não
respeitar as diversidades culturais e regionais dos países
mais pobres. O mesmo está agora a acontecer na União Europeia,
principalmente a partir da introdução da Moeda Única em 1999.
3. direitos
humanos e questões ambientais
Hoje [ 13 de Agosto de 2013 ] o Jornal de Notícias
dá conta da reacção do presidente
do Zimbabwe, Robert Mugabe, aos seus opositores nas eleições de 31
de Julho:
«Os que estão chocados com a derrota podem enforcar-se, se
quiserem.»
Grande parte dos países africanos,
asiáticos e sul-americanos têm sofrido não só com as pressões das grandes indústrias dos
EUA e da Europa, mas também com os graves problemas de défice
democrático,
com a poluição e com a pobreza extrema. Na Índia, por exemplo, os grandes laboratórios farmacêuticos obtêm lucros astronómicos com o recrutamento, a preços irrisórios, de cobaias humanas que fazem perigosas experiências
(muitas vezes fatais) com medicamentos, perante a quase indiferença das autoridades internacionais.
Ao Ghana, à Nigéria e à Libéria, mesmo depois da Convenção de Bamako,
no Mali, em Janeiro de 1991, por intermédio de redes
mafiosas também utilizadas para o lucrativo negócio de armas continuam a
chegar da França, da Inglaterra, da Alemanha e de tantos outros
países industrializados dezenas de milhões de toneladas de
material electrónico usado e em fim de vida, provocando acumulações
insustentáveis de chumbo, mercúrio, cádmio e diversos outros
materiais tóxicos altamente perigosos para a saúde pública.
Na verdade, nem os EUA nem a UE estão interessados em mexer no que
quer que seja destes regimes, desde que continuem a haver aqui trabalhadores não qualificados
a receber 30 ou 40 cêntimos à hora, desde que continuem a servir a Merck e outros conhecidos laboratórios para as suas experiências
médicas e com transgénicos (só comparáveis
ao que os nazis fizeram na Alemanha e na Polónia durante a II Guerra Mundial), desde que continuem a produzir sem restrições ecológicas e a receber os resíduos dos países mais desenvolvidos em troca de compensações financeiras
inaceitáveis.
Isto significa que a Democracia é hoje uma
construção
paradoxal: tal como a conhecemos, é tão corrupta, que
depende em absoluto da existência de ditaduras fortes e sistemas económicos que não têm a mais pequena preocupação com
a qualidade de vida e até com a sobrevivência dos seus cidadãos.
4. a luta pela
cidadania
«O poder do cidadão, o poder de cada um de nós,
limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e
a pôr outro de que talvez venha a gostar. Nada mais. Mas as grandes
decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é. As
grandes organizações financeiras internacionais, o FMI, a OCDE, tudo
isso. Nenhum desses organismos é democrático. E, portanto, como é
que podemos continuar a falar de Democracia se aqueles que governam
o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo?»
JOSÉ
SARAMAGO
Fórum Social Mundial, Porto Alegre, Brasil
29 de Janeiro de 2005
«Em toda a Europa, os governos, tanto de direita como de esquerda, aplicam o mesmo programa de destruição sistemática dos serviços públicos e de todas as formas de solidariedade e protecção social que garantiam um mínimo de igualdade no tecido social. Em toda
a parte, então, revela-se a oposição brutal entre uma pequena oligarquia de financeiros e políticos, e a massa do povo submetida a uma precariedade sistemática, despojada do seu poder de decisão.»
JACQUES
RANCIÈRE, jornal
Publico, Espanha
15 de Janeiro de 2012
Segundo a revista Bilan (Bilan.ch,
14 de Julho de 2013), fazem
também parte do ranking das 100 famílias mais ricas da Europa alguns
multimilionários russos, «que se aproveitaram habilmente da onda de privatizações que varreu o país nos anos 90 para adquirir a preços baixos antigas empresas estatais.»
Ao obedecer cegamente às ambições da União Europeia, da OCDE, do FMI
e do Banco Mundial, que são dominados pelos grandes grupos
financeiros, os governos da Europa estão a repetir os mesmos
erros dos norte-americanos e da NAFTA, e confrontam-se já com os
mesmos problemas de destruição do Estado e degradação da qualidade de vida dos cidadãos.
O Papa Francisco, na sua habitual
missa do 1º de Maio, Dia dos Trabalhadores, referiu-se ao desastre
de Dacca e lembrou que as mais de 400 pessoas que ali morreram
eram
sujeitas a «trabalho escravo.» No passado domingo [ 11 de Agosto
de 2013 ], na praça de S. Pedro, no
Vaticano, fez um apelo
a cristãos e muçulmanos, instigando-os a trabalhar juntos para promoverem o
respeito entre as religiões, educando as novas gerações.
Depois de
séculos de dogmas e opressão religiosa, tem vindo a decrescer em todo
o mundo o número de pessoas que ainda acreditam no poder da Igreja,
talvez porque as suas dúvidas são muito maiores do que suas
certezas.
Poderá a Igreja
dos nossos dias contribuir de alguma maneira para orientar os cidadãos para as mudanças que
se impõem? Poderão estas tentativas de inclusão religiosa corresponder a
mudanças políticas que permitam ouvir o que os tradicionais partidos da oposição
têm a dizer? Estará a própria Igreja disposta a ouvir os comunistas?
5. epílogo: o ódio — problema ou solução?
Na Venezuela, nas eleições do dia 14 de Abril
passado, Nicolás Maduro, o sucessor natural do carismático Hugo
Chávez, venceu as
eleições com menos de 51% dos votos. Que lugar ficou
reservado no governo para proteger os direitos dos mais de 49% de
venezuelanos que votaram em Henrique Capriles? De que forma poderemos obrigar os
políticos de todo o mundo a formarem governos que incluam representantes de todos os
partidos que têm lugar nas respectivas Assembleias Nacionais?
A publicidade às grandes empresas está
em todo o lado e hoje já ninguém está livre da presença massiva
da iconografia selvagem dos mercados. Se o actual projecto de
Plutocracia continuar por muito mais tempo, estaremos todos
condenados não apenas ao fim da soberania dos Estados, mas também ao
fim da Literatura, das Artes e do livre pensamento.
Só poderemos criar uma Democracia
saudável se formos capazes de odiar esta Democracia podre que está a
pôr em causa o progresso da nossa civilização.
______
o ódio à Democracia e a generosidade do
mal:
as visões de Roosevelt, AJP Taylor [
de novo o Blitz ] e Jacques Rancière
Quem odeia a Democracia? Nós, que não a
queremos tal como ela é, ou eles, a quem ela serve por ser como é?
Em qualquer caso, estamos na emergência de uma guerra.
Fonte: Heist: Who Stole the American Dream?
(2011)
«A nossa tarefa
prioritária é pôr as pessoas a trabalhar. Não é um problema sem
solução se o encararmos sabiamente e com coragem. Pode ser alcançado
em parte com recrutamento directo do governo, fazendo-o como se
estivéssemos na emergência de uma guerra.»