a reserva de Mallarmé
«Mallarmé, de quem somos todos filhos, concedeu-nos para o suicídio,
para nos dissiparmos e não sermos senão consciência pura.»
YVES
BONNEFOY

foto NADAR,
cerca de 1890.
É sabido que o pintor Degas fez poesia na sua
juventude. Consta que um dia encontrou Mallarmé e disse: «Hoje
queria escrever um poema, mas não tenho ideias». Ao que Mallarmé respondeu: «Mas você não escreve poemas com ideias,
você escreve
poemas com palavras.»
Tinha no frigorífico sete palavras capitais
à espera de um dia de míngua:
mãe, mulher, sonho e respiração,
uma certa medida de sal e liberdade
e ainda não foi para morrer que nós nascemos
(em memória de Jorge de Sena).
E ao lado uma reserva de Mallarmé.
Por baixo do código de barras
dizia para manter tudo em lugar fresco.
Deixei passar os dias com migalhas
e desprezei as letras mais pequenas,
porque «à laboriosa abelha
não sobra tempo para tristezas».1
Agora que tanta falta me fazia
o poema ultrapassou o prazo de validade.
De qualquer modo de nada me valia:
há muito tempo que não pago a conta
da electricidade.
Antero de Alda
Poema fora de prazo
(inédito).
______
1 William Blake
A propósito de migalhas: «a gente neste mundo alimenta-se ou
sobrevive dessas migalhas do banquete dos outros» (Jorge de Sena).

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