já ninguém anda a pé
[ I ]
«Somos feitos dos mesmos genes do Cristiano
Ronaldo», diz hoje [ 22 de Março de 2014 ] um televisivo
economista do regime. Puta que o pariu!
1. os vendedores de
ilusões
Na passada segunda-feira debateu-se na televisão pública o
sucesso de Portugal na Europa: os nomes mediáticos da economia
portuguesa que
exporta, da cultura portuguesa que interessa, da investigação
portuguesa que inova e até do
futebol português que ganha.
E, contra esta tendência para expor
displicentemente a genitália diante do espelho, só mesmo alguém que
em 2013 a púdica revista francesa Le Magazine Littéraire
considerou «uma das dez grandes vozes da literatura estrangeira.»
Lembrando, talvez, o país que cose sapatos à mão para dar de
comer aos seus netos (ou o país que anda de burro coxo numa triste efeméride
ao
cavalo emplumado de D. Sebastião em Alcácer-Quibir), a escritora Lídia Jorge voltou
a sugerir o que lembrara dias antes na Casa Fernando Pessoa. Que
«nós [ nós, Portugueses ] ainda temos medo: medo do patrão, medo do prior, medo do
polícia...» Que «nós [ nós, Portugueses ] ainda temos
pena: pena do outro,
pena de todos, pena até do carrasco
que nos faz mal...» Que «nós [ nós, Portugueses ] temos uma grande força no acto de sonhar e uma grande indolência no
acto de agir...» (RTPplay, 11 de Março de 2014).
Hoje, em Portugal, circula pelas televisões, pelos
jornais e pelos facebooks metade do país a enganar a outra metade.
Praticamente desconhecido, o
poeta Ernesto Sampaio faz o retrato perfeito desta «gente da vida
airada [que] asseptizou o mundo, tornou obrigatórios os seus
conceitos de higiene e felicidade, empurrou a liberdade para o sótão
e as caves, cada vez mais do lado da desgraça e do sangue.» E
avisa: «não quero este discurso inquinado pela complacência
verbal dos plumitivos "améns", nem confundido com a sua completa
demissão moral» (Ernesto Sampaio, As Coisas Naturais, 2013).
Enfim, contra todos os vendedores de
ilusões que percorrem o mundo «de automóvel ou
avião a jacto», felizmente ainda há alguém que nos faz lembrar que, como
conclui Steiner,
o verdadeiro viajante é aquele que parece «nunca estar fora do
alcance dos sinos da aldeia mais próxima...» (George Steiner, A Ideia de Europa, 2006).

foto: GORDON PARKS Ingrid Bergman at Stromboli Itália, 1949.
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Em Abril de 1974 Portugal foi «a
princesa do Mundo», diz Lídia Jorge. A escritora acaba de
publicar Os Memoráveis (2014), onde relata o árduo caminho da
Revolução e a transformação da Democracia «numa espécie de
exílio» dentro duma Europa que não é hoje mais do que «a
nossa mãe apodrecida», aludindo ao romance de
Curzio Malaparte.

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