manual de
sobrevivência
[ XVIII ]
1. a fotografia e a realidade
Willy Ronis, o famoso autor de Nu provençal
(1936), dizia que o que faz a fotografia é o fotógrafo e não a
máquina, e ficou conhecido por «le poète du quotidien». Brassaï lembrava recorrentemente que «nada é mais belo
do que a realidade» (rien n’est plus beau que la réalité,
ou ainda: nada é mais surreal do que a realidade...), e
Pierre Verger, que viveu no Brasil, «gostava de documentar os
personagens sociais» e «recusava-se a comandar as cenas»
(Cláudia Pôssa,
O toque Verger, 2006). De certa maneira, isto está de acordo com
um determinado conceito fotográfico, que naturalmente não é consensual: nem a fotografia deve mascarar a realidade,
nem a realidade deve mascarar-se para a fotografia. Ronis e Brassaï
e Verger e até Bresson defendiam que há poesia suficiente nas ruas. Ainda assim,
será possível alguma interferência?
2. a realidade e o caos
Stephen Hawking, em Breve História do Tempo
(1988),
faz uma interessante alusão ao princípio antrópico do seguinte modo:
«Vemos o Universo da maneira que ele é porque vivemos nele», o
que quer dizer que «se o Universo fosse diferente não estaríamos
aqui.» Esta teoria agnóstica do mundo dá-nos uma visão peculiar
do espaço, sugerindo que poderíamos estar num outro lugar e
eventualmente num outro tempo sem podermos interferir objectivamente
com a realidade que já não seria a nossa (o Universo deve ser de tal
forma que possa conter observadores em algum estado da sua evolução
— princípio antrópico forte). Ou, em última análise,
no caos.
o meu destino é o
nada,
aonde nem eu mesmo estarei
para me rever.
3. o caos e a fé
As fotografias contam-nos estas duas
maneiras de vermos a realidade: através dos nossos próprios olhos
enquanto fotógrafos e através dos olhos dos outros enquanto
observadores com essa fatal condição de não poderem interferir.
Tal reflexão leva-nos à pergunta que acompanha o
Homem através dos tempos: perseguindo o princípio determinista de Hawking,
de que modo poderemos condicionar o espaço (e o tempo) a que
pertencemos? E, por consequência, a uma outra inevitável, deduzida
das conhecidas preocupações
de Popper: podendo interferir, como deveríamos fazê-lo
sem provocar mais danos?
Isto pode querer dizer que ordem e
caos existem simultaneamente, e aos dois poderá convir acreditarem que,
a uma possível equidistância,
existe alguém ou alguma coisa
que sempre nos observa e de alguma maneira nos condiciona. Afinal, um homem sem fé é um
homem morto, ou: não será isso que dá algum interesse às nossas
vidas?

foto WILLY RONIS
Nu provençal, Gordes 1936.
o Inverno está
na terceira prateleira
do guarda-roupa.
_______
a história de Nu provençal
«O destino dessa imagem, replicada
constantemente em todo o mundo, ainda me surpreende.» (Willy
Ronis)

«Era um Verão quente e eu estava a
tentar reparar o sótão. Eu precisava de uma tábua e ao descer as
escadas encontrei Marie-Anne nua, a lavar-se na bacia. Não te mexas, disse eu. Com as mãos ainda
cheias de gesso, peguei na minha Rolleiflex e fiz quatro
fotos. Escolhi a segunda. Foram dois minutos. Os milagres existem.
Revelei aqueles negativos sabendo que estava ali um grande momento
da minha vida, um momento vulgar mas repleto de poesia.»
Willy Ronis fotografava a sua mulher, a
bela Marie-Anne Lansiaux, então com 26 anos, na sua casa na rústica vila de Gordes,
perto de Avignon, no sul da França. Passados 52 anos, em 1988,
voltou a fotografá-la, mas desta vez com justificado pudor: ela
sofria de alzheimer e haveria de morrer três anos depois.
«Essa foto é muito querida para mim. Marie-Anne tornou-se parte da natureza, das suas folhas, como um pequeno inseto nos arbustos. Vivemos juntos 46 anos.»
o testemunho de Stephen Hawking
Em 1963, quando Stephen Hawking estava a
pensar fazer a sua tese de doutoramento, o seu médico diagnosticou-lhe ALS
(esclerose lateral amiotrófica), uma neuropatia motora
conhecida como a doença de Lou Gehrig, dando-lhe a entender que
só teria mais um ou dois anos de vida. Nestas circunstâncias, não
valeria a pena começar. Entretanto, dois anos depois Hawking
não tinha piorado muito. «Na realidade, as coisas até me corriam
bastante bem e tinha ficado noivo de uma excelente rapariga, Jane
Wilde. Mas para poder casar tinha de arranjar emprego e para
arranjar emprego precisava do doutoramento.» (SH,
revista EXPRESSO, 19 de Abril de 1997).
Doutorou-se, casou-se com a namorada em 1965 e vinte anos depois os
médicos voltaram a sugerir desligá-lo das máquinas, mas foi
justamente a sua mulher Jane que não autorizou. Fez três filhos,
separou-se em 1991, voltou a casar-se em 1995 com a sua enfermeira
Elaine Mason, voltou a separar-se em 2006 e entretanto escreveu
Breve História do Tempo, recebeu vários prémios internacionais,
participou em 2012 na cerimónia de abertura dos Jogos Paraolímpicos
de Londres, celebrou no passado dia 2 de Janeiro 71 anos e anunciou
a sua vontade de viajar para o espaço, pelo que o extrovertido
multimilionário Richard Branson já o convidou para tomar parte do
primeiro voo turístico da Virgin Galactic. Contra todas as
previsões, continua a testemunhar a sua maneira peculiar de ver o
Universo.

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