o salvador
da América
«Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa...»
ALLEN GINSBERG
O Uivo, orig. 1956
América tu és a culpada já passaste por tudo isto e não nos disseste
nada!
América eu perdoo-te porque não nos escondeste Ginsberg.

foto ALLEN
GINSBERG (auto-retrato), Nova Iorque, 3 de Junho de 1996.
AMÉRICA
América dei tudo e agora não sou nada.
América dois dólares e vinte e sete cêntimos em
17 de
Janeiro de 1956.
Não aguento a minha própria mente.
América quando poremos fim à guerra entre os homens?
Vai-te lixar com sua bomba atómica.
Não me sinto nada satisfeito não me chateies.
Não vou escrever o meu poema enquanto não estiver
perfeitamente equilibrado.
América quando serás tu angélica?
Quando é que te despes?
Quando é que olharás para ti através do sepulcro?
Quando é que serás digna do teu milhão de trotzkistas?
América porque estão as tuas bibliotecas cheias de
lágrimas?
América quando é que enviarás os teus ovos para a Índia?
Estou farto das tuas exigências loucas.
Quando poderei eu entrar no supermercado e comprar tudo
o que preciso com a minha beleza?
América no fim de contas tu e eu é que somos perfeitos
não o outro mundo.
As tuas engrenagens são demais para mim.
Tu fizeste-me desejar ser um santo.
Deve haver qualquer outra maneira de resolver esta
discussão.
Burroughs está em Tânger não me parece que volte
é sinistro.
Estás a ser sinistra ou trata-se de uma partida que
me pregas?
Estou a tentar definir as coisas.
Recuso-me a abandonar a minha obsessão.
América não empurres eu sei o que faço.
América as flores de ameixieira estão a cair.
Há meses que não leio os jornais, todos os dias
alguém é julgado por assassínio.
América sinto-me sentimental para com os Wobblies.*
*Nome por que são conhecidos os membros da I.W.W.
(Trabalhadores Industriais do Mundo)
América quando era miúdo costumava ser comunista
não lamento nada.
Fumei marijuana sempre que tive oportunidade.
Fico sentado em casa dias a fio a olhar para
as rosas na retrete.
Quando vou a Chinatown embebedo-me
e nunca me fazem amor.
Já decidi vai haver sarilho.
Devias ter-me visto a ler Marx.
O meu psicanalista acha que tenho toda a razão.
Não direi o Padre Nosso.
Tenho visões místicas e vibrações cósmicas.
América ainda não te contei o que fizeste ao Tio Marx
quando veio da Rússia.
Dirijo-me a ti.
Irás permitir que a tua vida emocional seja dirigida pelo
Time Magazine?
Estou obcecado pelo Time Magazine.
Leio-o todas as semanas.
A capa do Time Magazine olha para mim todas as vezes
que passo pela tabacaria da esquina.
Leio-o na cave da Biblioteca Pública de Berkeley.
Está sempre a falar-me da responsabilidade. Os homens
de negócios são sérios. Os produtores de cinema
são sérios. Toda a gente é séria excepto eu.
Vem-me agora a ideia de que eu sou a América.
Estou a falar outra vez para mim.
A Ásia está a levantar-se contra mim.
Não tenho a mínima chance.
Talvez seja melhor inventariar os meus recursos nacionais.
Os meus recursos nacionais são dois bocados de marijuana
milhões de órgãos genitais uma
literatura privada impublicável
que anda a 1400 milhas por hora
e vinte e cinco mil manicómios.
Sem mencionar as minhas prisões nem os milhões de
subprivilegiados que vivem nos meus vasos
de flores à luz de quinhentos sóis.
Aboli os prostíbulos de França, os de Tânger são
os próximos a ir.
A minha ambição é ser Presidente apesar de ser Católico.
América como posso eu escrever uma litania sagrada
com a tua maneira de ser idiota?
Continuarei como Henry Ford as minhas poesias são tão
pessoais como os seus automóveis
mais ainda pois são de sexos diferentes.
América vou vender-te poemas a 2500 dólares, 500 dólares
de sinal para a tua epopeia
América liberta Tom Mooney
América salva os Republicanos Espanhóis
América Sacco & Vanzetti não devem morrer
América eu sou a malta de Scottsboro.
América quando eu tinha sete anos a minha mãe
levava-me a reuniões de uma Célula Comunista
vendiam-nos garbanzos uma mancheia por
bilhete
um bilhete custa uma coroa e os discursos eram
de borla toda a gente era angélica e sentimental
sobre os operários era tudo tão sincero
não fazes ideia como o partido era bom
em 1835 Scott Nearing era um velhote bestial
um verdadeiro mensch a Mãe Bloor fez-me chorar
uma vez vi mesmo Israel Amter. Toda a gente
deve ter sido espião.
América tu na realidade não queres a guerra.
América são os malandros dos Russos.
Os Russos os Russos e os Chinas. E os Russos.
A Rússia quer comer-nos vivos. A Rússia está sedenta
de poder. Quer roubar os nossos carros das nossas
garagens.
Quer fanar-nos Chicago. Precisa de um Reader's Digest
vermelho. Quer as nossas fábricas de automóveis
na Sibéria. A sua grande burocracia quer explorar
as nossas estações de serviço.
Isto não está certo. Ugh. Ela fazer Índios aprender a ler. Ela
precisar grandes negros pretos. Ah. Ela fazer nós
todos trabalhar dezasseis horas por dia. Socorro.
América isto é muito grave.
América esta é a impressão com que fico ao olhar para
o aparelho de televisão.
América isto está certo?
Era melhor eu deitar já mãos à obra.
É certo que não quero ir para a tropa nem trabalhar com
tornos de precisão, mas de qualquer maneira
sou míope e psicopata.
América vou ajudar pessoal e loucamente de boa vontade.
ALLEN GINSBERG
Trad. Manuel de Seabra
Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana,
pp. 30-35.
Editorial Futura, Lisboa, 1973.
Eu sabia Allen! eu sabia que havias de ter uma costela russa é linda a tua ficha no FBI de J.
Edgar Hoover!
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Allen Ginsberg nasceu em Paterson (Nova Jersey) a 3 de Junho de 1926.
O seu pai era um professor e poeta lírico americano e a sua mãe uma comunista radical
imigrada da Rússia em 1905, vítima de doença mental intermitente
desde 1930.
Segundo o próprio, por volta dos 9/10 anos de idade escreveu o seu primeiro
poema, onde dizia: «Se o homem mata uma vaca para empadinhas de
borrego/ porque é que hei-de confiar-te a minha dor?»
Inspirou-se em Whitman, William Carlos Williams, Kerouac e
ainda na «alucinação auditiva» que era ouvir William Blake.
Inspirou Bob Dylan, Jim Morrison, Tom Waits, Philip Glass e muitos outros porque sabia bem
que «o peso do mundo é o amor. Sob o fardo da solidão, sob o
fardo da insatisfação o peso o peso que carregamos é o amor.»
Faleceu a 5 de Abril de 1997 quando a bem dizer já não poderia dizer
«a bem dizer estou na merda!» (era aclamado em todo o mundo e
os seus recitais de poesia tinham sempre lotação esgotada).

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