3. e um certo
carácter do flâneur
Andar a pé, ou «o contacto verdadeiro com
o real» como diz Ernesto Sampaio, não trata propriamente da arte de caminhar
(a peripatética) segundo Aristóteles, ou da nobreza do pensamento que resulta das
grandes caminhadas segundo Nietzsche, nem mesmo das andanças dos
românticos andarilhos de que o protestante Rousseau é um exemplo
acabado: «a
minha mente só trabalha com a ajuda das pernas» (Jean-Jacques
Rousseau, Devaneios de um Caminhante Solitário, 1782).
Consta que, com apenas 16 anos, Rousseau atravessou a fronteira da Suíça com
a França, de Genebra a Chambéry, e
seguiu depois até Turim, a pé, só para se
converter aos caprichos da bela católica Louise Éléonore, baronesa de Warens.
Em qualquer caso, «ficar sentado o menos possível: não pôr fé em pensamento algum que não tenha sido concebido ao ar livre e em plena liberdade de movimento...»
—
porque, afinal, «todos os preconceitos provêm dos
intestinos»
(Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, 1888).
Voltando a Walter Benjamin, com um bafo
de Baudelaire, aceite-se um certo carácter do flâneur, o verdadeiro
dono de Paris segundo Anaïs Bazin, ou essa figura
estereotipada do quase indigente
— o pedinte? —
que então se passeava pela capital francesa «para ver o
mundo, estar dentro do mundo» , desafiando a moral burguesa
dominante (Charles Baudelaire, O Pintor
da Vida Moderna, 1863).
E, por fim, o excêntrico Rimbaud, ele
próprio de certa maneira especializado na arte da flânerie
(ou um misto de flâneur e dândi), porém, que se considerava a
si mesmo «um pedestre, nada mais!» Ironia do destino, pouco antes de morrer amputaram-lhe uma
das pernas, logo a ele, que ficou conhecido por «andar a pé, sempre a
pé e medindo com as suas pernas a amplidão da
terra» (Frédéric Gros, Caminhar
—
Uma Filosofia, 2010).
Andar a pé (Walking, 1862) é o
título de um pequeno livro de Thoreau, que classifica
e divide os seres em viventes e não viventes e muitos anos antes já
sabia que «o mais vivo é o mais selvagem»
(Henry David Thoreau,
Walden, 1854).
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"todo o capitalista é um paralítico?"
«Dar uma alma a essa multidão, eis o verdadeiro
papel do flâneur...»
(Walter Benjamin), pois, «que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a alma?»
(Marcos, 8:36).
A análise alegórica à psicogeografia dos alienados das grandes cidades da era
pós-industrial foi reinterpretada
do seguinte modo por
Debord: «Cette société qui supprime la distance géographique recueille intérieurement la distance, en tant que séparation spectaculaire»
(esta sociedade que reduz a distância geográfica acolhe no seu
íntimo a distância enquanto separação espectacular — Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo, 1967).
Orientados por uma espécie de «cartografia
alternativa» (Iain Sinclair, London Orbital, 2002), os «nómadas intelectuais»
(Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente, 1922)
são hoje livres pensadores, tão violentamente desprezados como
violentamente desprezam
a sociedade de consumo e o fetichismo dos mercados.
Pois se «o espectáculo é o modelo de
vida socialmente dominante», ou se «o capitalismo refaz a
totalidade do espaço como seu próprio cenário», como diz Debord, é o próprio Debord que propõe, a
partir de Henrique IV, de Shakespeare: «Ó senhores, a vida é curta… Se vivemos, vivamos para
marchar sobre a cabeça dos reis.»
