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  Post 018 -  Junho de 2009  

 

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as cores do mal

 

 

A trágica alquimia bélica da linguagem das cores usada nas armas do Vietname contribuirá de algum modo para a existência de um vocabulário anti-poético? Teria Adorno razão quando disse que depois de Auschwitz não haveria poesia possível?

 

 

 

foto JUSTIN MOTT Agent Orange (3rd generation), 2008.

 

 

 

 

VIETNAME

 

Dia santo—oito horas da manhã.

No coração do inferno

lavam-se os dentes duma M-16.

É inconfundível o som

da Kalashnikov a ser armada.

 

Eram duas armas dos diabos!—dizem.

 

Deus não aguentaria

desfolhantes nem excrementos.

 

Antero de Alda

Da série 'Geografia Divina' (inédito).

 

 

 

Uma das primeiras vezes que me confrontei com imagens das vítimas do «gás laranja» utilizado pelos americanos na guerra do Vietname foi em 1992, através das fotografias de Ira Chaplain publicadas no jornal Expresso de 9 de Maio desse ano, muito provavelmente com origem numa reportagem do New York Times.

 

A visão dos pequenos fetos humanos malformados e «encarcerados» em frascos nos laboratórios de Ho Chi Min (velha Saigão) e Hanói, juntamente com os versos panfletários anti-americanos de Allen Ginsberg («América não empurres eu sei o que faço/Não vou escrever o meu poema enquanto não estiver perfeitamente equilibrado/América vai-te lixar com a tua bomba atómica») transformaram-se para mim numa mistura devastadora, uma espécie de poderoso desfoliante psicológico.

 

É dramática a leitura dos acontecimentos da época no Japão e no Vietname, ao ponto de eu achar eternamente odiável a famosa frase atribuída a Roosevelt aquando da entrada dos EUA na II Grande Guerra: «Até que enfim, já vamos a caminho...». Não pelo que isso representou de positivo no desfecho do conflito com Hitler, claro (ainda assim, à custa do ataque a Pearl Harbor), mas pelos caminhos que os americanos haveriam de seguir depois por Granada, Afeganistão, Argélia, Argentina, Cambodja, Somália, Filipinas, Panamá... até Timor?

 

É óbvio que os Estados Unidos não estão sós na cronologia das grandes maldades e muito menos no trágico caso do Vietname: nas estradas de Saigão ter-se-ão cruzado durante muitos anos os velhos 'Volga' dos generais soviéticos com os 'Dodge' dos americanos que ficaram ou dos vietnamitas albinos-traçados que fizeram para sempre lembrar ao povo indígena que as suas mulheres foram para a cama com o inimigo. Mas, se as estratégias militares implicam tantas vezes nomes de código, não deixa de provocar alguma indignação a ironia usada pelo vocabulário bélico dos generais norte-americanos, extensíveis às próprias armas. «Enola Gay» foi o nome dado ao B-29 que transportou a primeira bomba atómica e era também o nome da mãe de Paul Tibbets, o famoso piloto do bombardeiro que o conduziu até Hiroshima em 1945 (rezam as crónicas que a detonação foi feita a uma altitude que permitisse a máxima destruição). «Little Boy» foi o nome dado à própria bomba e «Para Hirohito, com amor e beijos» foi o que o general da força-aérea norte-americana Thomas Ferrel gravou no seu casco a lápis de cera por cima da sua assinatura...

 

 

Arthur Westing, o famoso professor do Hampshire College (Western Massachusetts, EUA) que estudou a fundo os efeitos dos gases emitidos na guerra do Vietname, refere que para além do «agente laranja» o Pentágono utilizou vários outros desfoliantes igualmente com códigos de cor, como o «agente branco», o «agente azul» e o «agente violeta»... (Arthur H. Westing, «Herbicides in War», 1984). Aliás, havia ainda o «agente verde» e em território inimigo os armazéns de pipas destes químicos ganhavam tamanhas nuances cromáticas que para sempre ficaram conhecidos por «herbicidas do arco-íris».

 

Muitas décadas depois, estas armas continuam a fazer as suas vítimas, pelo que tem sentido a análise mais pessimista dos inúmeros especialistas sobre o assunto: «the effects of war no longer end when the shooting stops.»

Esta é, aliás, a convicção de Christopher Hitchens, que há poucos anos presenciou no gabinete da Dra. Nguyen Thi Thanh Phuong, em Hanói, o drama de uma mulher que havia já perdido a mãe no espectro das cores do mal, via agora a sua filha de 10 anos servir-se do pé direito para levar à boca um biscoito oferecido pela enfermeira de serviço e temia também pela saúde dos netos que ainda não tinha. Para o polémico colunista da Vanity Fair, algumas das vítimas do «agente laranja» ainda estão para nascer...

 

 

De facto, para muitas das vítimas a guerra nunca acabou e não há remédio para esta ferida aberta do Vietname. Mas, à margem da linguagem perversa dos generais americanos presentes na Indochina, também aqui como em tantos outros lugares no Mundo os códigos de cor podem ter novos surpreendentes significados.

 

Especialistas em geoterapias acreditam que as argilas de cor (a argila branca para máscaras faciais, a argila amarela contra o envelhecimento cutâneo, a argila vermelha para a respiração da pele e a argila verde para a cura de edemas e a regulação sebácea, com ligeira acção esfoliante...) têm um efeito curativo extraordinário, baseado não só nas qualidades químicas da terra, mas também na capacidade de transferir energias. Esta crença existe desde a Antiguidade e foi defendida por Hipócrates, o pai da medicina (460-377 a.C.), que a difundiu entre os seus discípulos.

 

Diversas tribos remotas da Amazónia utilizam os banhos de terra para purificação, e algumas medicinas orientais servem-se das argilas para desintoxicar e transformar energias perversas em energias positivas.

 

Porque hoje sabe-se que os vietnamitas vítimas dos ataques americanos usavam regularmente a argila contra as queimaduras do napalm, não poderia ter sido também de argila (colorida) o banho de Tomoko que Eugene Smith imortalizou na sua fotografia de 1972, em Minamata, no Japão?

 

Infelizmente, a criança não sobreviveu.

 

 

_______

"a doença de Minamata"

O arco-íris de herbicida na cidade de Minamata, no sul do Japão, não pairava nos céus: um dos maiores crimes ecológicos do século passado foi provocado pela indústria Chisso Corporation, uma fábrica local que inicialmente (1908) produzia fertilizantes e foi expandindo a sua produção de diversos químicos altamente tóxicos (de 1932 a 1968), infectando as águas residuais e a cadeia alimentar, especialmente baseada no pescado. As vítimas sofriam de ataxia, dormência de mãos e pés, fraqueza muscular, debilidades sensoriais, paralisia, coma, afectação dos fetos e em muitos casos morriam. A cor do sulfato de mercúrio espelhava em toda a baía de Minamata.

 

 

Conveniências linguísticas

Os termos «esfoliante», «desfoliante» e «desfolhante» têm sido utilizados indiscriminadamente para descrever a mesma acção dos gases letais americanos no Vietname. Embora a utilização de cada um deles possa parecer indiferente, a verdade é que o termo «desfolhante» tornou-se mais conveniente para a justiça americana.

 

Em Junho de 2005 um tribunal de Nova Iorque decidiu arquivar um processo movido pela Associação de Vítimas do Agente Laranja contra as empresas que fabricaram o químico. Jack Weisntein, o juiz que determinou o arquivamento, alegou duas razões principais para este desfecho desfavorável aos 4 milhões de vietnamitas que subscreveram a acusação. Uma, dizendo que a opção pelo recurso aos herbicidas se deveu a uma política interna da responsabilidade das chefias da nação e não das indústrias que os produziram (um porta-voz da Monsanto, uma das empresas acusadas, corroborou esta decisão com o seguinte argumento: «qualquer pendência relativa aos períodos de guerra deveria ser resolvida entre os governos americano e vietnamita»). A outra, baseou-se na convicção de que os mais de 50 milhões de litros de herbicida lançados sobre os campos do Vietname entre 1962 e 1971 (mais de 80 milhões de litros em toda a Indochina, com um grau de concentração mais elevado do que inicialmente se dizia) faziam parte de uma estratégia para destruir apenas as plantações de arroz, que alimentavam o inimigo, e para remover a folhagem da mata, que lhe servia de abrigo...

 

Mas a justiça na América não é divina e, como quase toda a justiça humana, tem também dois pesos e duas medidas: em 1984, os soldados americanos que foram igualmente vítimas das radiações químicas conseguiram em tribunal um acordo com as empresas responsáveis pela produção dos herbicidas. Pouco depois, à margem dos tribunais, ex-soldados da Austrália, Canadá e Nova Zelândia chegaram também a acordo com a Monsanto e a Dow Chemical, supondo-se que o valor destas indemnizações ultrapassou os 200 milhões de dólares! A acção movida pelos vietnamitas baseava-se, aliás, nestes precedentes, pelo que a sua indignação agora é maior. Segundo estes, os relatórios dos médicos dos EUA que comprovam as lesões dos soldados que participaram nos ataques parecem ser mais convincentes do que os relatórios dos médicos do Vietname que comprovam as lesões dos soldados (e dos agricultores e das suas famílias) que foram atacados...

 

"uma ferida aberta..."

Numa crónica publicada no diário espanhol El País, a 2 de Dezembro de 2006, o enviado especial José Reinoso relata a experiência dramática de Le Quang Chon, um ex-agricultor de 54 anos natural de Thanh Hoa, a 200 quilómetros a sul de Hanói, que viu a tragédia das armas químicas atravessar três gerações da sua família.

 

«Depois do fim da guerra — conta Le Quang —, em 1975, minha mulher teve o nosso primeiro filho. Mas o que nasceu não era um ser humano. Em três ocasiões ela deu à luz seres que eram monstros e que morreram imediatamente. Pouco depois nasceu uma menina que parecia normal. Em 1982 tivemos um menino e em 1985 outro. Mas conforme cresciam começaram a sentir dores nos ossos. Os médicos diagnosticaram cancro na menina, e quando tinha 15 anos foi preciso amputar-lhe uma das pernas...

«Depois, a minha filha casou-se e teve uma menina. Mas, quando os médicos descobriram que ela tinha espinha bífida por causa do 'agente laranja', o seu marido abandonou-as...»

 

El País, 2 de Dezembro de 2006

Orig. La herida abierta de Vietnam

Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves

 

 

 

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