a filha de Galileu
[ o
mensageiro das estrelas e a mensageira de Deus ]
«Deveis dirigir os vossos pensamentos e as vossas
esperanças para Deus, que, tal como um pai extremoso, nunca abandona
os que Nele confiam e que a Ele recorrem em tempos de necessidade.
(...) San Matteo, 20 de Abril
de 1633.»
As 124 cartas de soror Maria Celeste para o seu pai,
Galileu Galilei, serviram-lhe de insubstituível consolo durante dez
longos anos, entre 1623 e 1633, mas especialmente durante os cinco
meses de inquirições às ordens do Tribunal do Santo Ofício, que
o levaram à prisão domiciliária.
A correspondência foi estudada pela escritora
norte-americana Dava Sobel, publicada em 1999 e arquivada na Biblioteca Nacional de Florença.

Virgínia, ou soror Maria Celeste.
A história da filha de Galileu serve para explicar que a
intransigência de Deus
é um bálsamo comparada com a intolerância dos homens.
Se uma pedra for lançada do cimo do
mastro de um navio em movimento ela cairá sempre na base do mastro,
seguindo uma trajectória aparentemente vertical, e nunca, como
defendiam Aristóteles e Ptolomeu, pedras ou nuvens ou pássaros ou
quaisquer outros objectos que circulem pelo ar poderão ficar para
trás no caso da Terra se movimentar em torno do Sol em vez do
contrário...
A evolução do geocentrismo para o
heliocentrismo teve as suas implicações, desde Nicole D’Oresme
(1323-1382), o bispo de Lisieux, que tanto combateu a astrologia
como propôs pela primeira vez uma teoria anti-aristotélica e
anti-ptolomaica sobre a relação do Sol com a Terra, Copérnico
(1473-1543), Giordano Bruno (1548-1600) e Kepler (1571-1630),
até Galileu Galilei (1564-1642), passando pela Guerra dos Cem Anos e pela Peste Negra, que tanto
contribuíram para a resistência às reformas na agonia da Idade
Média.
Oresme foi aceite pela simplicidade da
sua teoria, eliminando conflitos maiores com o Santo Ofício ao
adoptar o famoso princípio da navalha de Ockam (a Lei da
Parcimónia), que sugere que qualquer fenómeno não deve ser explicado
senão com as suas premissas básicas, a meio caminho entre
intuição e ciência.
Copérnico desenvolveu a astuciosa
teoria do movimento de rotação da Terra, a origem dos equinócios e a
causa das estações, e poderá ter sido poupado pela Igreja (ou — quem
sabe? — severamente castigado por Deus), porque consta que
morreu exactamente no mesmo dia em que se publicou De
revolutionibus orbium coelestium (Da revolução das esferas
celestes), a 24 de Maio de 1543.
Kepler foi subestimado: haveria de confirmar a
existência dos satélites de Júpiter e criar as bases da teoria da
gravitação universal desenvolvida por Galileu e Newton.
Finalmente, Bruno de Nola — o frade dominicano
Giordano Bruno — foi acusado de heresia pelos católicos, excomungado
pelos calvinistas, fugitivo de Roma e de Génova, exilado em França,
Suíça, Inglaterra, Alemanha e ainda na antiga Boémia (Praga, na
actual República Checa), até morrer na fogueira às ordens da
Inquisição, em Campo de Fiori (a Praça das Flores, em Roma, com
vista para o Tibre). Enfim, um mártir.
«(…) Para além dos confeitos de limão, mando-vos
duas peras cozidas para estes dias festivos. Mas o meu presente mais
especial é uma rosa, que, por ser tão extraordinária neste tempo tão
frio, espero que seja recebida com todos os cuidados. (…) Junto com
a rosa, o Senhor não poderá rejeitar os espinhos que representam o
amargo sofrimento de Nosso Senhor, bem como as suas folhas verdes
que simbolizam a esperança que alimentamos (em virtude desta santa
paixão) na recompensa que nos aguarda, após a brevidade e a
escuridão do Inverno da vida presente, quando entrarmos por fim na
claridade e felicidade da Primavera eterna dos céus, que o Deus
Bendito nos concede graças à sua misericórdia. (…) A vossa filha
muito dedicada, soror Maria Celeste.»
San Matteo, 19 de Dezembro de 1625.
Segundo Dava Sobel, autora do livro Galileo’s Daughter,
«num mundo que ainda não sabia onde se situava, Galileu iria travar
um conflito cósmico com a Igreja, trilhando um perigoso caminho
entre o Céu, que ele venerava como bom católico, e o céu, que
revelava com o seu telescópio.»
Giordano Bruno foi executado no dia 17
de Fevereiro de 1600. Nesse mesmo ano nasceu a filha
mais velha de Galileu, Virgínia, que venerava a controversa
figura do «mui ilustre senhor seu pai» e decerto
acreditava piamente – como Giordano – que o mundo não pode ser
finito se o próprio Deus seu criador é por natureza infinito.
Em homenagem ao fascínio do pai pelas estrelas, adoptou o nome de Maria Celeste,
aos 13 anos, enquanto noviça mendicante do convento das franciscanas de San Matteo, em
Arcetri, Florença.
Perderam-se as cartas que Galileu
escreveu à filha, provavelmente queimadas pela
abadessa secular de San Matteo no mesmo lume da intolerância (e
do medo) que incendiou Giordano. Pelo contrário, as cartas de soror
Celeste para Galileu foram preservadas e provam quanto
extremosa era a clarissa
boticária: chegou a inventar pomadas, pílulas papais, incensos de
açafrão e aloé, doces de
cidra e de limão e outros elixires caseiros, que — com bafos de laranja e
peras cozidas e rosas e espinhos e folhas verdes — serviam para fortalecer o pai nos seus
estudos e protegê-lo das doenças epidémicas.
Galileu, que descobriu as manchas solares, as montanhas da Lua, as fases de Vénus, quatro
satélites de Júpiter, os anéis de Saturno e a Via Láctea e por isso
foi considerado o mensageiro das estrelas, sobreviveu à filha, a
penitente mensageira de Deus.
Os seus últimos anos, de 1634 a 1642,
foram de grande sofrimento, tanto pela abjuração como pela solidão familiar
como ainda pela cegueira,
que lhe proporcionaram ao mesmo tempo inspiração e
angústia. Numa carta dirigida à Grã-Duquesa Cristina de Lorena
confessara, em 1615, mais ou menos isto:
«Descobri nos céus várias coisas que não haviam sido vistas antes do nosso tempo. A novidade desses achados, assim como as consequências que deles decorriam em contradição com as noções físicas comumente defendidas pelos filósofos académicos, acirrou contra mim um número não
insignificante de pessoas
— como se eu tivesse colocado essas coisas no céu com as minhas próprias mãos com a finalidade de
contrariar a Natureza e subverter a Ciência.»
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"a filha mais velha"
Galileu nunca casou, mas sabe-se que tomou como governanta uma jovem
plebeia veneziana de nome
Marina di Andrea Gamba, com quem teve três filhos.
Virgínia — «a
filha por prostituição de Marina de Veneza» — nasceu em 1600, Lívia em 1601 e Vincenzo em 1606.
Virgínia foi soror Maria Celeste e Lívia foi soror Arcângela no
mesmo convento de pobres damas de Arcetri, e
Vincenzo acolheu o nome e a profissão do avô e tornou-se tocador de alaúde
em Pisa.
"Abjuração"
Em 1633, Galileu não resistiu, como
Giordano Bruno, e retratou-se perante Urbano VIII e o Tribunal do Santo Ofício,
talvez consciente da grandeza da obra que tinha ainda para realizar em
silêncio durante os últimos nove anos. Morreu em Janeiro de 1642, e
só duzentos anos depois é que o seu polémico Diálogo (de 1632)
foi excluído do Index, a lista dos livros proibidos pela
Igreja.
Consta que o seu corpo foi sepultado na mesma
campa da sua filha Maria Celeste, em lugar habitualmente reservado
às noviças, sob a torre sineira da Igreja de Santa Cruz de Florença.
Foi transladado
para junto do túmulo do seu pai, numa das várias capelas particulares das
melhores famílias florentinas daquela basílica franciscana, mesmo em frente do túmulo de Michelangelo,
em 1737. Por esta ocasião foram preservados alguns restos mortais: apontando em
direcção aos céus, vestígios do seu dedo indicador estão em exposição no
antigo Palazzo Castellani, o Museu de História da Ciência de
Florença, mais conhecido por Museo Galileo.
"carta dirigida à Grã-Duquesa Cristina de Lorena"
Na carta dirigida à "Sereníssima Senhora, a Grã-Duquesa Mãe" da Toscana, Cristina de Lorena,
em meados de 1615, Galileu pretendia demonstrar que o conflito com a
teoria de Copérnico era irrelevante, já que a Natureza e a Bíblia (a
Natura e a Scrittura) são ambas obras de Deus. E,
entre outras coisas, apoiou-se em Josué 10: 12-13: «Josué falou ao Senhor e disse, na presença dos israelitas:
"(...) Detém-te, ó Sol, sobre Guibeon;
e tu, ó Lua, sobre o vale de Aialon." O Sol parou no meio do céu e não se
apressou a pôr-se durante quase um dia inteiro.»

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