três histórias de Natal
[ 2. Maria da Graça ]

Foto: ANTERO DE ALDA
Maria da Graça (90).
No dia 16 de Novembro [ 2017 ] fui com um amigo
à pequena aldeia de Canadelo, a cerca de 35 minutos de Amarante.
Parece que fica aqui a dois passos, mas quando se chega lá temos a
sensação de ter passado pelas águas do purgatório.
A primeira pessoa que vimos foi uma
senhora vestida de preto dos pés à cabeça, que embora não parecendo contou-me que
tinha 90 anos. Fotografei-a com o Bilhete de Identidade nas mãos, porque
a
falta de sinais exteriores de castigo pareceu-me o argumento mais
adequado. Aliás, a Dona Graça prestou-se à máquina com a mesma
devoção de quem vai à missa e passa pelo fotógrafo da vila para ter
uma lembrança para dar aos filhos...
Trinta e três dias depois, a 19 de
Dezembro, pensaria já
a Dona Maria da Graça que eu era um embuste, voltei a Canadelo e
dirigi-me àquela pequena casa amarela que ela tinha pudor (eu nunca
diria vergonha) em mostrar. Ficou
comovida.
Estava uma manhã muito fria:
entreguei-lhe a fotografia e fui dar uma volta pela aldeia.
Quando regressei ao carro, bem perto do
meio-dia, a Dona
Graça estava à espreita, a meia dúzia de passos, nem muito
afastada de casa nem demasiado próxima de mim, de modo a não
surpreender a vizinhança. «Senhor professor?!... — Diga lá, Dona
Graça», e aproximei-me.
Pois a Dona Maria da Graça, viúva de
um soldado do exército, vinha com um paninho dobrado em quatro, e
qual não foi o meu espanto quando, ao abri-lo, lá estavam os dois: ela,
lindíssima!, numa
pequenina fotografia com os seus 25 anos, e ao lado o falecido marido,
com grande majestade na indumentária militar.
«Senhor professor, queria que me
levasse isto e me fizesse uma só fotografia com estes dois
retratos...»
Imaginem o meu sobressalto: «— O
quê, Dona Graça?! E a senhora confia em mim?»
«Confio, senhor
professor, sei que o senhor é capaz de fazer isso, e eu não tenho
dinheiro para pagar a um fotógrafo...»
Vejam só como as palavras, às vezes,
são mágicas, como a simplicidade de uma pobre mulher pode carregar a
sabedoria de toda a Humanidade.
Prometi-lhe que voltaria ainda antes
do Natal.
Assim, depois de laboriosa vontade no meu pequeno editor de imagem, no dia 24, tarde
de consoada, voltei e encontrei a Dona Graça em casa do filho. Não
foi capaz de verter uma lágrima, mas ofereceu-me o Mundo que tinha ao seu
alcance.
Levei-lhe o que me pediu (em três ou
quatro cópias) e o pequeno lenço com os dois retratos na mesma
dobra, porque não deve o homem separar aquilo que Deus uniu.
[ promessa ]


Fotos: ANTERO DE ALDA
Maria da Graça e marido. 24 de Dezembro de 2017.
____
"uma lembrança para dar aos filhos..."
Uma certa lembrança para dar aos filhos é daquelas coisas que se faz uma vez
na vida e deve ficar gravada até que o esquecimento dos
vindouros a apague. O meu pai também já me ofereceu "o retrato da
sua vida" e, sim, a este pode chamar-se com autoridade o retrato da
sua vida!, uma fotografia do seu tempo existencial.
"a sabedoria de toda a Humanidade."
A Humanidade está carregada de desumanidade, mas às
vezes um pequeno verso ou uma pequena fotografia (ainda que não
sejam feitos por um verdadeiro poeta ou um verdadeiro fotógrafo) pode ser
o perdão para os
pecados mais remediáveis.

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