«Poesia trata-se, antes de mais nada, de fazer música com a própria dor.»
PAUL VALÉRY
«A tarefa de Frida, como pintora, estava
imbricada com a narração de sua catástrofe.»
Gilda Kelner, Suzana Boxwell e António Ricardo Rodrigues da Silva, Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo
Lágrimas, negativos fotográficos de sangue...
Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu em Coyoacán,
México, em Julho de 1907, filha de um judeu-alemão de nome Guillermo Kahlo e
de uma bonita mestiça mexicana chamada Matilde Calderón e Gonzalez.
Antes do seu nascimento, a vida do seu pai (e também a da sua mãe)
fora já uma sucessão de trágicos acontecimentos, cruzados depois com
a sua própria tragédia: Frida herdou-lhe o gosto pela
pintura e pela fotografia.
Frida, perna de pau...
Aos seis anos contraiu poliomielite:
ficou coxa, com uma perna mais curta e a musculatura atrofiada e
anos mais tarde haveriam mesmo de lhe amputar um pé.
Um ferro atravessou-me como a
espada a um touro...
Aos dezoito anos (1925)
foi vítima de um violento acidente de autocarro, que a deixou
paralisada durante vários meses devido a graves fracturas na coluna
vertebral e na bacia, ficando impedida de ter filhos (haveria de
engravidar três vezes sem sucesso). Segundo o relatório médico, uma
barra de ferro entrou-lhe pelo quadris esquerdo e mostrou-se na
vagina, provocando-lhe mazelas que iriam
persegui-la durante toda a vida: fez 32 intervenções
cirúrgicas, que não conseguiram aliviar-lhe o sofrimento.
A par disto, Frida exteriorizava
sinais de uma bissexualidade perturbadora, e jamais conseguiu
sublimar de outra forma senão através da pintura o facto de ter sido
amamentada por uma ama-de-leite em vez da sua própria mãe: este
direito fora-lhe retirado pela irmã, Cristina, 11 meses mais nova e
indiscutivelmente mais bonita.
Espelho, verdugo dos meus dias...
Após o acidente,
impossibilitada de continuar a estudar, o seu pai construiu-lhe um
cavalete especial, que lhe permitia pintar deitada na sua cama
frente a um espelho. Fez
o seu primeiro auto-retrato em 1926, e esse seria o princípio da sua
emancipação: «pinto auto-retratos —
disse — porque estou a maior parte do tempo só, porque sou a
pessoa que melhor conheço.»
A partir de então, transformou as suas doenças em modelos da sua pintura:
de facto, todos os seus quadros são narrativas da sua catástrofe.
Sobrevivendo
às sucessivas
vicissitudes, eterna inconformada e irreverente, Frida Kahlo tornou-se famosa na América e na Europa e
ficou na História como uma das grandes pintoras do século XX. É, por
isso, severa e pessimista a visão de Jean Cocteau
sobre arte e poesia: que implicam solidão espantosa, maldição de
nascença e, em suma, religião sem esperança.
Lúcia Helena Vianna, a investigadora brasileira que
estudou exaustivamente o diário de Frida Kahlo, refere que a pintora
«tece um elo indestrutível entre vida e obra, com a explícita
conexão de tinta e sangue.»
A literatura ensina,
aliás, que o amor e a poesia podem salvar, e tais lições de
sobrevivência tendem a substituir a fé num deus qualquer.
Pés, para que vos quero, se tenho asas para voar?
Cansada de sofrer, Frida Kahlo rendeu-se à morte aos
47 anos, em 1954. Mas, porque não poderia sair («espero com
alegria a saída... e espero não regressar nunca») pelos seus próprios
pés, imaginou-se a
levitar no seu leito em chamas...
Sobreviver
através da pintura (e do amor, ao lado de Diego Rivera) foi a sua
religião. «Viva la vida!» era a sua assinatura.