Phoolan Devi
[ a valquíria dos pobres ]
No dia [ 5 de Outubro ] em que duas corajosas
mulheres do povo interromperam a cerimónia oficial das comemorações
da Implantação da República, em Lisboa, para
protestar contra as medidas de austeridade. No mesmo dia em que um antigo
dirigente do principal partido da maioria, depois de mais um
brutal aumento dos impostos, acusou o governo de «assalto à mão armada
aos contribuintes.»
(...)
«Na Índia, se és pobre e te violam, vais à
polícia e na esquadra violam-te outra vez.»
PHOOLAN
DEVI
Numa entrevista a Luis Mazarrasa
El Mundo, 2001.
«Na Índia, supõe-se que as filhas dos pobres
são propriedade dos ricos.»
PHOOLAN
DEVI
Numa entrevista a Mary Anne Weaver
The Atlantic Monthly, 1996.
Há no universo da mitologia diversas
deusas castas e justiceiras (Artemis do panteão grego, Diana para os
romanos), mas nenhumas são tão vingativas como as valquírias, que
cruzam os céus com as suas espadas brilhantes não para suster o
ódio, mas para multiplicá-lo. E, se na antiga tradição nórdica as
valquírias escolhiam as suas vítimas entre os mais fracos, há no
coração da Índia moderna uma mulher lendária — a "rainha dos
bandidos" — que ficou conhecida por ter sido humilhada, usar de
bárbara vingança sobre os seus inimigos e
roubar aos mais ricos para dar aos pobres.
Assim, diz Phoolan Devi: «aquilo a
que alguns chamam crime eu chamo justiça!»

Phoolan Devi, em 2001, no
Parlamento Indiano, onde se destacou como
defensora das causas das mulheres, das castas baixas e dos sem-casta.
foto GETTY IMAGES/staff
Por alguma razão Phoolan Devi haveria
de ser (como diz o seu nome) a "deusa das flores".
Nasceu em Gorha ka Purwa, uma pequena aldeia
do estado de Uttar Pradesh, no norte da Índia, a 10 de Agosto
de 1963, no seio de uma família da shudra (a casta mais
baixa, condenada à condição servil) — amaldiçoada ainda por dar à
luz
cinco crianças e apenas um filho varão. Cumprindo uma tradição secular, foi
obrigada a casar-se aos 11 anos de idade com um homem muito mais
velho, mas recusou as
obrigações do matrimónio. Regressou a casa e foi humilhada pela própria
família, que lhe propôs o suicídio para se expurgar da desonra.
Ora acusada de promiscuidade, ora vítima
de inúmeras atrocidades sexuais, Phoolan Devi refugiou-se nas
densas florestas do norte e centro da Índia,
principalmente entre Dholpur e as margens do Chambal (o rio conhecido por arrastar o
sangue das vacas sacrificadas pelo rei ariano Ranti Deva),
perpetrando uma série de ataques violentos às castas superiores.
Em Agosto de 1980, na pequena aldeia de Behmai (então distrito de Kanpur Dehat, agora Ramabai Nagar), foi
capturada, violada inúmeras vezes durante três semanas consecutivas e por fim
abandonada. Ao repórter do jornal El Mundo que a entrevistou
em 1994, admitiu ter sido protegida por Maa Durga, a deusa-mãe, «uma das
personalidades mais terríveis de Parvati, a consorte de Shiva, o
deus da trimurti ou Santíssima Trindade da cosmologia hindu, que
destrói o Universo e volta a criá-lo a partir da energia que se
desprende da sua dança. Durga é representada a cavalgar um tigre e
com uma arma em cada um dos seus dez braços; é com elas que abate os
demónios» (do texto de Luis Mazarrasa, El Mundo,
publicado a 29 de Julho de 2001).
Regressou menos de um ano depois, a 14 de Fevereiro (dia de S. Valentim) de 1981,
para vingar o amante que fora assassinado: com o seu novo
grupo de rebeldes, executou vinte e dois aldeãos thakur, conhecidos pela
sua ascendência feudal e por exercerem constante brutalidade sobre as
castas inferiores. O crime abalou toda a Índia e durante os dois anos
seguintes Phoolan desafiou as autoridades do país, tomando de
assalto dezenas de aldeias com o megafone em punho para ordenar
aos ricos que entregassem os seus bens.
No princípio de
Fevereiro de 1983, quase dois anos depois do massacre de Behmai e
após longos meses de negociações, Phoolan Devi entregou-se às
autoridades do estado de Madhya Pradesh, na presença de 300 militares
e mais de uma centena de repórteres de todo o mundo. O cenário foi
meticulosamente montado, e segundo o relato da
conhecida jornalista Mary Anne Weaver (India's Bandit Queen,
The Atlantic Monthly, Novembro de 1996),
Phoolan trazia vestido um uniforme caqui com um cinto de munições ao
peito, uma
espingarda Mauser pelos ombros, um xaile e ainda um lenço vermelho na cabeça. Curvou-se
sob os retratos de
Durga e Gandhi e foi aclamada por mais de oito mil populares que
se juntaram e que a consideravam já uma espécie de "borboleta da floresta"
— deusa das
flores e dos pobres.
Esteve presa sem julgamento durante 11 anos. Aprendeu
a ler e a escrever e casou-se com um negociante de sucesso. Em Junho de 1996 foi eleita para a
câmara baixa (a Lok Sabha, que representa o povo) do Parlamento da Índia,
onde se destacou como defensora das causas das mulheres, das castas
baixas e dos sem-casta.
Consta que nos últimos anos
Phoolan Devi ameaçou separar-se do
seu último marido, Ummed Singh, e há quem acredite que foi este o mandante de três
encapuzados que a mataram a tiro à porta de casa, em Nova Deli,
no dia 25 de Julho de 2001. A versão oficial atribui o atentando aos
sobreviventes de Behmai.
Aos jornalistas
confessou certa vez que fazia listas exaustivas daqueles que não lhe
permitiram viver com dignidade... Só não conseguiu vingar-se dos seus
próprios assassinos.

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