e o lado oculto da
Europa...
«A modernidade é o nosso destino.»
S. P. ROUANET

foto RUTH MATILDA ANDERSON Mozo galego con boina
Muros, A Coruña, 1924.
1. todos somos judeus
A chegada de Hitler ao governo em 1933 foi absolutamente
democrática. Tão democrática como a chegada de Portugal ao Euro. Nem
os nazis permitiram novas eleições nem os europeístas permitem
voltar atrás.
Cego está o Angelus Novus — o anjo da História —
à beira do precipício.
No universo da porca União Europeia, para a
prepotente Alemanha todos somos judeus. Os portugueses são judeus, os
gregos são judeus, os espanhóis são
judeus, os italianos são judeus...
Lasciate ogni speranza voi che entrate.
Abandonai a esperança, vós que entrais. Assim dizia
Dante nas portas do Inferno. O mesmo diziam os honrados "cidadãos" do Terceiro Reich
aos pobres judeus de Berlim.
Judeus serão também os húngaros, os macedónios, os sérvios e todos os outros povos dos chamados países da Europa Central e Oriental
(PECO), sobre os quais cairá também, mais cedo ou mais tarde, a pata
capitalista na sua fúria pela conquista de Salammbô...
2. a
memória dos vencidos
Verdi morreu. Acabou-se a folia? Não. E, no entanto, continua a
haver muitas bocas para alimentar...
A supremacia dos mercados sobre os Estados começa com
a brutal ameaça a tudo o que é público, ou seja: com o aniquilamento
absoluto da concorrência reguladora, conseguido
através da cumplicidade de políticos corruptos que se dispõem a
lucrar com os grandes negócios privados. Walter Benjamin chamou-lhe
«a empatia pelos vencedores», ou esse desejo cruel de
participar no «cortejo triunfal». E, como se supõe de Reyes Mate, não há um
suspiro de misericórdia, um gesto que seja de respeito pela memória
dos vencidos.
3. o único caminho
Se fosse tão fácil roubarem-nos a língua como nos
roubaram o Estado, já não teríamos Camões, nem Pessoa, nem Pátria. Afinal, porquê esta total ausência de inveja em relação ao passado? (Hermann Lotze)
É este o único caminho — dizem-nos. E o resultado é
que, ignorando séculos de história (e o que dizia Pascoaes: «Não há pior erro do que esse de cultivar num povo qualidades estranhas que lhe não pertencem por natureza», 1913), somos ainda um povo e já quase não temos Estado. E todos, de uma
maneira ou de outra, estamos condenados a gemer este triste fado. O
fado, por exemplo, de termos um presidente da República que obteve lucros excepcionais com a falência de bancos fraudulentos, o fado de termos um ministro dos Negócios Estrangeiros que colaborou na gestão danosa que levou esses bancos à falência, o fado de termos uma ministra das Finanças que negociou com
swaps para salvar esses bancos... E em qualquer dos casos
provocando-nos prejuízos extraordinários.
4. libertar Cartago
Garda a túa Ítaca, Xosé!
A Europa implora pela eutanásia.
Assim, levados a acreditar que, como outrora os
pequenos merceeiros judeus do Terceiro Reich, somos todos feios,
porcos e maus (Etore Scolla, 1976), desprezamos
o que se supôs em A Condição Humana (Hannah Arendt,
1958), e já não acreditamos na política como acção e como processo com vista à conquista da
nossa liberdade.
Como diria Flaubert, poucas pessoas saberão quanta
tristeza foi necessária para ganhar coragem para libertar Cartago.
Agora (agora, sim, um agora num
tempo saturado de "agoras"), a responsabilidade dos cidadãos é combater
sozinhos esta
fatalidade de modernidade.
_______
"a modernidade é o nosso destino"
SÉRGIO PAULO ROUANET em A razão nômade: Walter Benjamin e outros viajantes,
Rio de Janeiro, 1994. Rouanet diz também: «O esvaziamento da tradição não é necessariamente um mal, pois enquanto arquivo da injustiça, ela contribui, de certo modo, para perpetuá-la.»
(Édipo e o anjo, Rio de Janeiro, 1981).
Pois, se a modernidade é o nosso destino, a que modernidade nos
estaremos a referir?
"Lasciate ogni speranza"
Segundo o relato de Max Weber, abandonai a esperança
poderá ter sido também o que o judeu
Georg Simmel ouviu quando se propôs ensinar numa universidade alemã. Episódios como
este terão levado Simmel e desenvolver a ideia de «tragédia da
cultura», algo que Weber define como o dilema entre a ética da
responsabilidade e a ética da convicção: grosso modo, a negação da
cultura é o que leva o homem moderno a enclausurar-se numa espécie
de "jaula de ferro", transformando-se em vítima das suas próprias
decisões.
"Salammbô"
Princesa de Cartago. No
romance homónimo de Gustave Flaubert (1862), Salammbô foi cortejada
por Mâtho, um dos soldados mercenários do exército cartaginês. Em
Salammbô, Flaubert descreve ainda a revolta dos mercenários, por
não terem recebido as recompensas prometidas pelas suas
conquistas...

ADRIEN-HENRI TANOUX,
Salammbô (crop), 1921.
"ignorando séculos de história"
Como se deduz de Nietzsche, precisamos da história, mas não como
dela precisam os ociosos que passeiam no jardim da Ciência ou da Economia («São esses tipos — cientistas, engenheiros, homens da prancheta
— as personificações do carácter destrutivo, cujo lema é criar espaço, desobstruir caminhos. Desvinculado da tradição, entendida como experiência comunicável e coletiva, o património cultural torna-se um fardo morto, um obstáculo à construção do novo.
O seu movimento não abre nenhum caminho: condenado à repetição mítica, é uma pantomima do mesmo... ou os despojos do cortejo triunfal da história»,
KATIA MURICY, Alegorias da Dialética — Imagem e Pensamento em Walter Benjamin, Rio de Janeiro, 1998). Porque «a teoria
e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por
um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a
realidade.» (WALTER BENJAMIN, Sobre o conceito da História,
1940).
Esperam-nos, enfim, muitas tempestades. A
cada tempestade que nos espera, nós chamamos progresso.
No dia [ 13 de Outubro de 2013 ] em que
Mário Soares defendeu na TSF que «alguns
governantes são delinquentes e deviam ser condenados.»
Ao contrário da matilha de comentadores
dos jornais e das televisões e das redes sociais que se colocam ao
serviço do governo (o «cortejo triunfal»), eu não posso
deixar de concordar. Na verdade, quem anda para aí a dizer que o
Estado tem de emagrecer, que nós
andamos a viver acima das nossas possibilidades, que o Tribunal
Constitucional é uma força de bloqueio, que devemos vassalagem ao
FMI, que temos de pagar a nossa dívida mesmo com juros de oito e dez
e vinte e quarenta por cento ou mais, que temos de trabalhar até aos
70 anos e que um emprego já não é para toda a vida... só pode ser
delinquente.
É preciso que haja alguém que seja capaz
de dizer em poucas palavras aquilo que é preciso fazer: meter esta
gente nos tribunais para que respondam pelos crimes que andam a
cometer.

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