o honrado
cigano Melquíades
Ainda a propósito de Cem Anos de Solidão...

foto JOSEF KOUDELKA, Roménia, 1968.
Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções.
Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia.
Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda a gente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam dos seus lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurava e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. «As coisas têm vida própria», apregoava o cigano com um sotaque áspero,
«é tudo uma questão de lhes acordar a alma.»
José Arcadio Buendía, cuja
imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da Natureza
e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível
servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra.
Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: «Para isso não
serve.»
Em Cem Anos de Solidão
o cigano Melquíades morre ao fim da vigésima primeira página, de
entre as mais de trezentas do romance de Gabriel García Márquez.
Porém, a sua criação, que devia andar muito «à frente do engenho da
Natureza», ameaça ultrapassar os
próprios limites da persistência divina.
Os dois lingotes
magnetizados, que passaram a ser conhecidos como «os ferros
mágicos de Melquíades», seguramente não serviam para
«desentranhar o ouro da terra», mas não ficavam a dever nada a
um pequeno número de animais domésticos incapazes de satisfazer a
«desaforada imaginação» de José Arcadio Buendía.
Em Março voltaram os
ciganos. Desta vez levavam um óculo de longo alcance e uma lupa do
tamanho de um tambor, que exibiram como última descoberta dos judeus
de Amesterdão. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e
instalaram o óculo à entrada da tenda. Mediante o pagamento de cinco
reais, quem quisesse olhava pelo óculo e via a cigana ao alcance da
mão.
Quando
José Arcadio Buendía descobriu que
poderia utilizar a lupa como arma de guerra, pensando talvez
concentrar a luz do sol para ofuscar (ou incendiar) as hostes
inimigas, Melquíades mais uma vez tentou dissuadi-lo, mas em vão:
supõe-se que José, durante longos meses, entregou-se «às suas
experiências tácticas» com tal abnegação, que chegou a atear
fogo a si mesmo e pôr em
risco a própria vida.
Para o compensar,
Melquíades aceitou de volta a
lupa, em troca de uns mapas portugueses e vários instrumentos de
navegação: um astrolábio, uma bússola e um sextante, com que o
empreendedor José Arcadio Buendía haveria de confirmar uma poderosa
teoria: «—A Terra é redonda como uma laranja.»
E, finalmente, chegou o dia em
que Melquíades, precocemente envelhecido pelas «múltiplas e
estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens à volta da
terra», apareceu em Macondo
com aquela enigmática dentadura postiça que lhe fazia esquecer-se
«das gengivas destruídas pelo escorbuto, das suas faces flácidas e
dos seus lábios murchos», levando a crer que possuía «um total
domínio da sua juventude restaurada...»
(.........................)
Por
fim, chegou ao sítio onde Melquíades costumava armar a sua tenda e
encontrou um arménio taciturno que anunciava um xarope que tornava
as pessoas invisíveis. Tinha bebido de um só trago a substância
ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu caminho ao empurrão por
entre o grupo absorto que assistia ao espectáculo e conseguiu fazer
a pergunta. O cigano envolveu-o no clima atónito do seu olhar, antes
de se transformar num charco de alcatrão pestilento e
fumegante sobre o que ficou a flutuar a ressonância da sua resposta:
«Melquíades morreu.»
Não haverá neste mundo alma alguma tão
pura como a do honrado cigano Melquíades (incapaz
de enganar a «desaforada imaginação» de José Arcadio Buendía,
o engenhoso fundador da misteriosa aldeia de Macondo), a menos que
nos instruamos de suficiente Ciência — e magia! —, capazes de
eliminar as distâncias que nos levam para lá do ilhéu onde corre
aquele rio de leito
«de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos»
aonde se esconde a generosidade humana.
Dom
Apolinar Moscote tinha chegado a Macondo sem fazer barulho.
Hospedou-se no Hotel do Jacob — instalado por um dos primeiros
árabes que vieram trocar bagatelas por araras — e no dia seguinte
alugou um quartinho com porta para a rua, a dois quarteirões da casa
dos Buendía. Pôs uma cadeira e uma mesa que comprou a Jacob, pregou
na parede um escudo da República, que trouxera consigo, e pintou na
porta o letreiro: Corregedor.
(...)
José Arcadio Buendía nem sequer olhou para a nomeação:
—
Nesta aldeia, não mandamos com papéis — disse sem perder a calma. —
E é bom que saiba de uma vez por todas que não precisamos de nenhum
corregedor porque aqui não há nada para correger.
_______
"persistência divina"
Nunca consegui acabar de ler Cem Anos de Solidão, desencantado
com a morte precoce do feiticeiro «de barba ferina e mãos de
pardal-dos-telhados». Lamentavelmente, desisti um pouco antes da
quadragésima sexta página, sem esperança de ver García Márquez
ressuscitar o honrado cigano Melquíades e sem saber ainda que a
persistência divina de certas criaturas deve ser herança genética dos seus
criadores...
Cem Anos de Solidão na 27ª
edição da D. Quixote, tradução de Margarida Santiago, Lisboa, 2011.

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