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  Post 085 -  Maio de 2012  

 

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o honrado cigano Melquíades

 

 

 

 

Ainda a propósito de Cem Anos de Solidão...

 

 

 

 

foto JOSEF KOUDELKA, Roménia, 1968.

 

 

 

 

   Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções.

 

   Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia.

 

   Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda a gente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam dos seus lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurava e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. «As coisas têm vida própria», apregoava o cigano com um sotaque áspero, «é tudo uma questão de lhes acordar a alma.»

 

   José Arcadio Buendía, cuja imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da Natureza e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: «Para isso não serve.»

 

  

 

   Em Cem Anos de Solidão o cigano Melquíades morre ao fim da vigésima primeira página, de entre as mais de trezentas do romance de Gabriel García Márquez. Porém, a sua criação, que devia andar muito «à frente do engenho da Natureza», ameaça ultrapassar os próprios limites da persistência divina.

 

   Os dois lingotes magnetizados, que passaram a ser conhecidos como «os ferros mágicos de Melquíades», seguramente não serviam para «desentranhar o ouro da terra», mas não ficavam a dever nada a um pequeno número de animais domésticos incapazes de satisfazer a «desaforada imaginação» de José Arcadio Buendía.

 

 

   Em Março voltaram os ciganos. Desta vez levavam um óculo de longo alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como última descoberta dos judeus de Amesterdão. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo à entrada da tenda. Mediante o pagamento de cinco reais, quem quisesse olhava pelo óculo e via a cigana ao alcance da mão.

 

 

   Quando José Arcadio Buendía descobriu que poderia utilizar a lupa como arma de guerra, pensando talvez concentrar a luz do sol para ofuscar (ou incendiar) as hostes inimigas, Melquíades mais uma vez tentou dissuadi-lo, mas em vão: supõe-se que José, durante longos meses, entregou-se «às suas experiências tácticas» com tal abnegação, que chegou a atear fogo a si mesmo e pôr em risco a própria vida.

 

   Para o compensar, Melquíades aceitou de volta a lupa, em troca de uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação: um astrolábio, uma bússola e um sextante, com que o empreendedor José Arcadio Buendía haveria de confirmar uma poderosa teoria: «—A Terra é redonda como uma laranja.»

 

   E, finalmente, chegou o dia em que Melquíades, precocemente envelhecido pelas «múltiplas e estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens à volta da terra», apareceu em Macondo com aquela enigmática dentadura postiça que lhe fazia esquecer-se «das gengivas destruídas pelo escorbuto, das suas faces flácidas e dos seus lábios murchos», levando a crer que possuía «um total domínio da sua juventude restaurada...»

  

 

 

 

 

   (.........................)

   Por fim, chegou ao sítio onde Melquíades costumava armar a sua tenda e encontrou um arménio taciturno que anunciava um xarope que tornava as pessoas invisíveis. Tinha bebido de um só trago a substância ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu caminho ao empurrão por entre o grupo absorto que assistia ao espectáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano envolveu-o no clima atónito do seu olhar, antes de se transformar num charco de alcatrão pestilento e fumegante sobre o que ficou a flutuar a ressonância da sua resposta: «Melquíades morreu.»

 

 

   Não haverá neste mundo alma alguma tão pura como a do honrado cigano Melquíades (incapaz de enganar a «desaforada imaginação» de José Arcadio Buendía, o engenhoso fundador da misteriosa aldeia de Macondo), a menos que nos instruamos de suficiente Ciência — e magia! —, capazes de eliminar as distâncias que nos levam para lá do ilhéu onde corre aquele rio de leito «de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos» aonde se esconde a generosidade humana.

 

 

   Dom Apolinar Moscote tinha chegado a Macondo sem fazer barulho. Hospedou-se no Hotel do Jacob — instalado por um dos primeiros árabes que vieram trocar bagatelas por araras — e no dia seguinte alugou um quartinho com porta para a rua, a dois quarteirões da casa dos Buendía. Pôs uma cadeira e uma mesa que comprou a Jacob, pregou na parede um escudo da República, que trouxera consigo, e pintou na porta o letreiro: Corregedor.

   (...) José Arcadio Buendía nem sequer olhou para a nomeação:

   — Nesta aldeia, não mandamos com papéis — disse sem perder a calma. — E é bom que saiba de uma vez por todas que não precisamos de nenhum corregedor porque aqui não há nada para correger.

 

_______

"persistência divina"

Nunca consegui acabar de ler Cem Anos de Solidão, desencantado com a morte precoce do feiticeiro «de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados». Lamentavelmente, desisti um pouco antes da quadragésima sexta página, sem esperança de ver García Márquez ressuscitar o honrado cigano Melquíades e sem saber ainda que a persistência divina de certas criaturas deve ser herança genética dos seus criadores...

 

Cem Anos de Solidão na 27ª edição da D. Quixote, tradução de Margarida Santiago, Lisboa, 2011.

 

 

 

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