o
daguerreótipo de Deus
Ainda Melquíades e Cem Anos de Solidão...

foto HENRI CARTIER-BRESSON, México, 1934.
Entretanto Melquíades acabou de plasmar nas suas placas tudo o que
podia ser plasmado em Macondo e abandonou o laboratório de
daguerreotipia aos delírios de José Arcadio Buendía. (...) Através
de um complicado processo de exposições sobrepostas, tiradas em
vários pontos da casa, tinha a certeza de, mais tarde ou mais cedo,
vir a fazer o daguerreótipo de Deus...
Gabriel García Márquez
"Cem Anos de Solidão"
Não há amor sem o ódio,
não há o bem sem o mal. Se a fotografia é, como
se diz, uma invenção do
diabo (concorrendo com Deus na criação do
universo), o que não poderá ser, afinal, se puder fixar o corpo (sem o desprender da alma, sem lhe suspender a moral)
num mesmo instante em diferentes lugares?
Ao sétimo dia Deus não
descansou: tirou fotografias...
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"uma invenção do diabo"
A invenção de Joseph Niépce e Louis Daguerre provocou, a partir
de 1839, natural inquietação, ao ponto de um jornal
alemão ter referido: «O desejo
de capturar os reflexos evanescentes não só é impossível, mas o
mero desejo em si, a vontade de assim o fazer, é uma blasfémia.
Deus criou o Homem à sua imagem, e nenhuma máquina feita
pela mão humana pode fixar a imagem de Deus. Será possível
que Deus tenha abandonado os Seus eternos princípios, e permita
que um francês dê ao mundo uma invenção do diabo?» (Leipzig City Advertiser, 28 de Agosto de
1839). Por ironia, foi através dos jornais alemães que se vulgarizou
o fotojornalismo, depois da II Grande Guerra.
A partir de 1936, o dilema da reprodutibilidade técnica suscitava
novas inquietantes preocupações
filosóficas em A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica,
de Walter Benjamin (quer dizer: a criação divina não só estava ao
alcance do homem como podia ser desbaratada).
A luta entre ricos e pobres pelo direito à propriedade mantém-se até
hoje. Mas, voltando atrás, Baudelaire, que foi fotografado pelo seu
amigo Nadar em 1855
(como afinal a maioria dos burgueses da época que criticavam a
fotografia),
não deixou de participar, com desconfiado sarcasmo, nas quezílias entre as autoridades do céu e
do inferno: «A fotografia não passa de um refúgio para os
pintores frustrados, (...) um Deus vingativo que realiza o desejo do
povo.» (Cit. Annie Le Brun,
Le Sentiment de la nature à la fin du XXe siècle,
1982).
A polémica não tem fim: «Mãos de tesoura, olhos mecânicos... A
sociedade produtora de formas aberrantes pode ainda glorificar o
homem», escreveu Timothy Druckrey (Ars Electronica: Facing the Future
— A Survey of Two Decades, MIT Press, 1999) inspirado em Dziga
Vertov, o realizador russo autor de O Homem com uma máquina de
filmar...
Para muita gente o único
retrato possível do supremo criador continua a ser o
sudário de Turim.

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