três histórias de Natal
[ 1. Maria Pires — regresso ]

Foto: ANTERO DE ALDA
Maria Pires (93).
Encontrei-a no corredor, a chorar.
Não era um choro compulsivo, é certo,
mas não era só da constipação («Maria Pires, o que lhe dói?» — Dói-me tudo, dói-me tudo...).
Como quase sempre acontece com pessoas
desta idade, era um daqueles "choramingares" de quem envelheceu e
poderá ter muita infância pela frente, como diz Carpinejar. Contudo, penso que seria
mais um choro de quem, não tendo já de facto muita infância pela frente, aos 93 anos carrega pelas espáduas
toda a dor do mundo, ou «o fardo horrível do tempo» como
dizia Baudelaire.
«Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos…»
PAUL CELAN Fuga da morte
«Ela sabe as palavras mas limita-se a sorrir.
Mistura o seu sorriso no cálice de vinho:
Tens de o beber, para estar no mundo.»
PAUL CELAN Sete rosas mais tarde
Já quase não vê, mas reconheceu-me pela voz e pelo tacto («Dei-lhe um gorro de lã!»).
É verdade: em Agosto de 2011, quando lhe levei o retrato de 2010, fiz um pequeno filme, ela estava a fazer meia...
«meia meia feita, meia meia por fazer, ora diga lá quantas meias há-de ser».
Ofereceu-nos um gorro, não daquelas coisas dos chineses que se vendem nas feiras, mas um gorro de lã grossa feito à mão, lindíssimo, com "orelhas" (chamam-lhes assim para as protegerem das agressões do gelo), um gorro que transporta a dignidade da alma barrosã.
A Maria Pires estava triste, sim, mas afagámos-lhe as mãos (mãos quentes, e as nossas tão frias porque estava muito frio em Montalegre) e
trocámos abraços, e para esta mulher tão doce, tão doce, e também para nós, foi um momento
inapagável.
Eu, que quase nunca choro (esta verdade tão lamentável nos homens), dei-lhe forças:
«Não está nada a morrer, Maria Pires! Não pense na morte, senão morre mais cedo.»
Na presença do filho e da sobrinha, que vieram de França (esta tragédia que nos separa e não nos larga!), prestou-se com uma paciência inexplicável aos cuidados da Margarida e à fotografia. Uma fotografia dramática, que quase pede perdão a si mesma por ter sido possível e ter sido feita...
Não tenho capacidade alguma para disfarçar a realidade!
[ Conceição ]

Foto: ANTERO DE ALDA
Conceição Lourenço (89).
Entretanto, aproximou-se de nós outra mulher: Conceição (as mulheres, todas as mulheres, têm nomes tão bonitos!).
Conceição Lourenço, 89 anos, é de
Pitões, essa maravilhosa Pitões de tantas das minhas viagens. Conhece a Maria Dias (ainda é viva) e a Maria Teresa (já morreu, eu já sabia), as irmãs Ana Bandarra e Lucinda Bandarra
'Piloto' (ainda são vivas!, só o homem da Lucinda, o António 'Piloto', já morreu, eu não sabia). Mostrei-lhe as fotos pelo telemóvel.
Pois, a Conceição Lourenço andava por ali com um papel na mão, e quando passou por
nós pediu-me para eu ligar para um dos três ou quatro números que trazia naquele papel.
Roubei-lhe o retrato à pressa, quando a Margarida lhe estava a passar o telemóvel para as mãos, e pouco depois ouvi-a a dar um verdadeiro sermão ao neto:
«Então tu não vens cá ver-me, com a tua namorada?»
Disse-lhe para ficar à vontade e ela afastou-se. Falou durante garantidamente meia hora. Adoçou.
Agradeceu-me: «A senhora tem um
homem tão bom!», disse para a minha mulher. E pediu-me
(sussurrando ao ouvido, porque ali dentro não é permitido fazer
pedidos destes) um lenço para levar à cabeça, que sentia frio, que o dela já estava velho, que não tinha dinheiro para comprar
outro.
Ficou prometido para Janeiro, como
ficou prometido que nesse meu regresso a Montalegre caminharemos
juntos por aquela aldeia granítica que fica quase no infinito do
mundo...

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