A RESERVA DE MALLARMÉ

a reserva de Mallarmé

Poesia, 2013

 

 

 

 

Título: «a reserva de Mallarmé»

Subtítulo: «trinta e três poemas em verso»

Edição: GALÁPAGOS — fábrica de poesia

Capa: Desenho da série À volta do cisne de Maillard

Formato: 14,9 x 21,6 cm

Número de páginas: 48

Data: Dezembro de 2013

Depósito Legal: 368003/13

ISBN: 978-989-20-4378-4

Impressão offset com acabamento cosido e sobrecapa

Preço: 10 euros *

* Edição especial de 50 exemplares numerados e assinados pelo autor: 20 euros

 

«O cidadão, hoje, não é um homem livre, é uma peça da máquina de opressão que se chama democracia. O cidadão é um homem que acredita no que o poder lhe diz. Agora, o poder diz que há uma crise terrível causada pelo facto do cidadão ter vivido acima das suas possibilidades e a única solução é o sacrifício. É falso. A crise é a fuga para a frente de um capitalismo desenfreado. (...) Viver já não é viver, é gerir a vida que temos e convertê-la num projecto rentável. Viver, em definitivo, é trabalhar. A nossa vida está precarizada e humilhada.» SANTIAGO LÓPEZ-PETIT

 

«Vivemos num mundo de opulência sem precedentes, mas também de privação e opressão extraordinárias. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente a sua condição de cidadãos.» AMARTYA SEN

 

 

 

 

Este livro conta a história de um homem que caminha no mundo e é despojado de tudo, até da própria alma («deixei a chave debaixo do tapete»). Um homem que chega a iludir-se («afago o fumo com gomos de laranja») e numa situação limite vacila entre o discernimento («estava a pensar hipotecar o gato do vizinho, mas felizmente ele desapareceu») e o desejo («o gato voltou para casa... crava-nos os olhos como um filho enterra as unhas na carne da mãe»). Um homem que, por fim, ressuscita no corpo de uma criança, agarra-se a uma árvore como na maravilhosa fotografia de Sabine Weiss tirada em Espanha em 1981 e diz, como e.e. cummings: «obrigado Meu Deus por mais este espantoso dia, pelos saltitantes e virentes espíritos das árvores.»

 

(...) É sabido que o pintor Degas fez poesia na sua juventude. Consta que um dia encontrou Mallarmé e disse: «Hoje queria escrever um poema, mas não tenho ideias». Ao que Mallarmé respondeu: «Mas você não escreve poemas com ideias, você escreve poemas com palavras.»

 

tinha no frigorífico sete palavras capitais

à espera de um dia de míngua:

mãe, mulher, sonho e respiração,

uma certa medida de sal e liberdade

e ainda não foi para morrer que nós nascemos

(em memória de Jorge de Sena).

e ao lado uma reserva de Mallarmé.

 

por baixo do código de barras

dizia para manter tudo em lugar fresco.

 

deixei passar os dias com migalhas

e desprezei as letras mais pequenas,

porque «à laboriosa abelha

não sobra tempo para tristezas».1

 

agora que tanta falta me fazia

o poema ultrapassou o prazo de validade.

de qualquer modo de nada me valia:

há muito tempo que não pago a conta

da electricidade.

 

1 William Blake

A propósito de migalhas: «a gente neste mundo alimenta-se ou sobrevive dessas migalhas do banquete dos outros» (Jorge de Sena).

 

A reserva de Mallarmé é um testemunho simbólico e amargurado da agonia do capitalismo, centrado numa experiência pessoal (o poeta, a família, os vizinhos, os bichos…) dispersa por uma vasta obra inédita, com base na peculiar interrogação de Karl Popper: «Como poderemos organizar as instituições políticas de forma que os governantes maus ou incompetentes possam ser impedidos de provocar mais danos?» Reflectindo sobre os conceitos de modernidade e sobrevivência (a besta hobbesiana, civilização e barbárie de Walter Benjamin e o mal estar da civilização segundo Freud, Christophe Dejours e o trabalho como usura mental e ainda Jacques Rancière e o ódio à democracia), a questão invisível que se coloca neste livro resume-se a isto: «Poderá o homem sobreviver sem alma? Para os pós-modernos o homem com alma é um homem inútil, mas como separar a alma do corpo que é preciso alimentar?»

 

 

«Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo génio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me.» DESCARTES, Meditações (1641)

 

eis um humano.

nasceu na Sarmátia,

entre o Mar Negro e o Cáspio

para lá do Tanais.

reinou na Pérsia onde

negociou com incenso e especiarias

e fez filhos de muitas mães.

ameaçou imperadores

secou o Ganges,

atravessou a Grande Muralha da China

e a Mongólia

venceu quatro dos Sete Cumes.

emergiu do fogo em Roma,

lutou na Macedónia

ao lado de Alexandre o Grande

e consta que experimentou

a montada do incansável Bucéfalo.

 

foi um dos patrocinadores

da Real Biblioteca de Alexandria.

 

circundou a Atlântida a nado,

caiu de cansado

numa lixeira do Bronx-Westport

e acabou às mãos

de um porto-riquenho fanhoso...

 

que bafo é este

de moral

do corpo

que apodrece?

 

 

***

 

Gelman, Prémio Cervantes: «Se me dessem a escolher, escolheria/esta saúde de saber que estamos doentes,/esta felicidade de andarmos tão infelizes./(...) Aqui acontece, senhores,/que jogo com a morte.»

 

Já houve tempo em que jogava com a morte

passei longos anos a ouvir sonatas surdas de Beethoven.

Hoje regresso a Vivaldi sinfonia (anacrónica) da Primavera.

A cama feita a roupa lavada a mesa posta a mulher saciada.

Lá fora as crianças saltam aos limoeiros da horta do vizinho:

na sua instante ingenuidade haverão que ensaiar o amargo de algum dia.

A televisão desligada.

 

Como diria Roger Michell em "Venus", a felicidade devia ser exterminada!

 

 

***

manual de sobrevivência VII

 

inutilizei todos os tubos do aquecimento

central colecciono vaga-lumes uivos

lancinantes não vendo palavras inteiras

reservo algumas letras para desarmar a

concorrência faço negócios improváveis hoje

por exemplo troquei um a de amor por um d

de dor e ainda um grilo sem uma pata

alguma coisa se há-de arranjar para o que

resta da semana.

 

sempre acreditei que o Céu também tem

o seu diabo.

 

 

***

 

manual de sobrevivência VIII

 

subi a encosta e virei

na esquina do Anjo Negro

de Nietzsche.

todo o ódio estava emparedado.

 

é preciso começar o mundo.

 

 

***

 

manual de sobrevivência XV

É o amor (o amor e o preconceito) que nos mata.

 

ontem vi um filme triste

hoje repito mil vezes "nunca tive amigos

só inveja inveja descansa não quero o teu lugar"

sexta-feira é dia de pudim francês

deus que também deve ler Cervantes

decidiu atiçar o sonho mas

a vida não dura mais do que três minutos

é só o tempo de ouvir uma canção.

 

 

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